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Segredos de um Escândalo

"Está ficando mais real"

Por Pedro Sales

Festival de Cannes 2023

Segredos de um Escândalo

Em um contexto que o rótulo de “baseado em uma história real” ou o uso do termo redundante “fatos reais” por si só são tratados como um gênero próprio, “Segredos de um Escândalo” se apresenta como uma crítica ferina à busca pelo real no cinema. A sátira ao realismo excessivo – e também de certa forma ao true crime – coloca em xeque a própria estrutura da indústria e a forma como se alimenta de traumas para criação artística. O diretor Todd Haynes, portanto, constrói o cinema como uma máquina predatória que devora intimidades e as transforma meramente em histórias, mas com certo grau de escracho e exagero autoconsciente. Assim, a obra pende dramaticamente do satírico ao melodramático, sobretudo quando a presença constante de uma pessoa externa àquela realidade causa transformações internas, revelações e reflexões diante do passado. Dúvidas e mudanças reforçadas a todo momento pelas atuações excepcionais do trio principal.

A atriz Elizabeth Berry (Natalie Portman) viaja ao interior dos Estados Unidos para se preparar para um novo filme e conhecer as pessoas que inspiraram a obra. Gracie (Julianne Moore), que será interpretada por Elizabeth, é uma mulher de meia idade casada com Joe (Charles Melton), 23 anos mais novo do que ela. O relacionamento dos dois começou quando ele tinha 13 anos e ela, 36. Gracie foi presa por abuso infantil, mas após a prisão teve três filhos com Charles, a mais velha nascida atrás das grades, inclusive. Elizabeth entra no lar deles para conhecer mais dessa história. Ela transpassa, então, do público o que foi noticiado nos tabloides da época para o privado as confissões, cartas e memórias dos envolvidos no episódio –, em um processo quase psicanalítico. A presença dela causa um desconforto tangível a partir do momento em que se envolve cada vez mais no seio familiar, provocando sobretudo dúvidas. A evidente complexidade moral da obra tem bases, ironicamente, na própria realidade. O roteiro assinado por Samy Burch é vagamente inspirado no escândalo de Mary Kay Letourneau, professora que teve um caso com aluno de 13 anos nos anos 90.

Dessa forma, “Segredos de um Escândalo” assume uma disputa latente entre Elizabeth e Gracie, entre a absorção da essência para a performance e o controle narrativo dos fatos ocorridos. Essa dualidade, de certa forma, representa o próprio cinema. Enquanto a maioria dos filmes que se enveredam pela metalinguagem o fazem sob um verniz romantizado e idealista, este consegue demonstrar o potencial destrutivo da arte na medida em que adaptar vivências pessoais traumáticas e questionáveis   não se torna uma espécie de justiça, mas um simples exercício de vaidade. A obra é muito bem fundamentada no falso e no real e isso se materializa também na própria mise-en-scène de Haynes. Por vezes, o cineasta opta por uma expressividade excessiva que pouco se justifica dentro da proposta, como a trilha sonora potente e o uso de zooms. Na realidade, tal artificialismo satiriza o sensacionalismo que esse tipo de história recebe quando adaptadas às telas, o melhor exemplo disso é o uso de uma trilha impactante para avisar “que vai faltar salsichas para os hot dogs”. Assim, o filme, por meio da linguagem cinematográfica, constrói uma tensão quase nunca correspondida, algo falso.

Se o falso é representado pelo escracho na direção, muitas vezes pendendo ao exagero, o real é evocado pelo melodrama arrebatador e a gravidade inerente no caso. Vale lembrar que Todd Haynes não é novato no gênero. Em “Longe do Paraíso” (2002), a referência é direta evocando Douglas Sirk, ao passo que “Carol” (2015) explora as convenções melodramáticas pela impossibilidade do romance lésbico. Aqui o real, a essência, está na relação de Elizabeth, Gracie e Joe e nos conflitos advindos da presença da atriz e da reflexão sobre dor e violência. Charles Melton promove essa crescente dúvida no personagem seguida de quebras emocionais bastante impactantes, é romper uma crisálida, como assinala a metáfora visual. Já Julianne Moore mistura ingenuidade e um pouco de manipulação na fala com língua presa e na personalidade aparentemente dócil. E Natalie Portman incorpora esses trejeitos, da cadência vocal às expressões faciais, quase tornando-se a personagem de Moore em um monólogo denso e aterrador. Ou seja, Elizabeth passa a mimetizar Gracie, e a câmera reforça essa transformação pelo uso de espelhos na decupagem das cenas, como uma simbiose e união indissolúvel, semelhante a “Persona” (1966), uma clara referência para a obra.

A complexidade de “Segredos de um Escândalo“, então, é pontuada desde o início. A moral reprovável de Gracie, que se envolveu com um garoto de 13 anos quando já era adulta, no entanto, não parece afastar Elizabeth. “É a complexidade, são as áreas morais cinzentas que são interessantes”, diz a atriz ao ser questionada pela própria filha de Gracie sobre por que interpretar alguém que considera ruim. Ao longo da rodagem, de fato isso que é o interessante na obra: a incerteza nos relatos e nas diferentes versões, os segredos que parecem ser revelados a cada nova nota do piano exagerado na trilha. Algo que nem Elizabeth em seu percurso stanislavskiano de criação de personagem e tampouco o público sabem dizer com certeza se Gracie “foi feita ou moldada”. Tal qual “Holy Motors” (2012), este longa põe os olhos na atuação e no próprio cinema de maneira extremamente mordaz, expondo contradições. Joe e Gracie em dado momento perguntam a Elizabeth se o filme falará a “verdade” sobre os dois. A pergunta é ingênua, uma vez que o cinema aqui explora e devora o íntimo e tudo ao redor em um fascínio pela performance. O âmago da família é transformado potencialmente para sempre para chegar ao tão almejado realismo, com a certeza de que dá para repetir novamente, pois está ficando mais real.

5 Nota do Crítico 5 1

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