Curta Paranagua 2024

Saudade Fez Morada Aqui Dentro

Ensaio sobre a cegueira

Por Fabricio Duque

Festival do Rio 2023

Saudade Fez Morada Aqui Dentro

Há obras cinematográficas de ficção que criam uma sinestesia tão genuinamente naturalista com o espectador, que parecem documentários reais da própria vida acontecendo no exato momento em que assistimos. É como se nós não percebêssemos a câmera, tampouco a presença de atores em ação. Tudo é equilibrado, verdadeiro, habitual, possível e não reconstituído aos arquétipos sociais. Esse é o melhor elogio que o filme pode receber, porque ao construir essa contemplação coloquial, nós somos imersos nos desdobramentos complexos de uma simplicidade temática e universal. Um desses exemplos, sem tirar, nem pôr, é o longa-metragem “Saudade Fez Morada Aqui Dentro”, de realizador baiano Haroldo Borges (de “O Filho de Boi”). 

Exibido na mostra competitiva do Festival Internacional de Cine de Mar Del Plata 2022  (vencendo Melhor Filme), depois no Festival do Rio deste ano, e de ter ganho o primeiro Prêmio Netflix na Mostra de São Paulo 2023, agora é selecionado para a décima edição da Mostra de Cinema de Gostoso, agora é selecionado para a Mostra de Cinema de Gostoso 2023, “Saudade Fez Morada Aqui Dentro” é um mergulho, de fora para dentro por um intimista ensaio sobre a cegueira, ora social, ora emocional, mas acima de tudo metafórico. Aqui, o roteiro, de Haroldo e Paula Gomes, traça linhas de aceitação, de preconceitos sugestionados, entre ressignificar sonhos-futuros, compreender a frase da mãe para o filho instantes após ter ficado cego: “você já viu muitas coisas bonitas, agora é descansar”. Sim, a utilização do verbo descansar é curioso e quer dizer muito mais coisa. Descansar do ver? Será então um presente de Deus, “poupando seu filho” de enxergar as feiúras do mundo? Ou descansar de se preocupar com a aparência? De se render à ajuda dos outros? Sim, uma simples palavra pode gerar “panos para a manga”. 

Sim, é quase inevitável não referenciarmos a “Ensaio Sobre a Cegueira”, do escritor português José Saramago, que depois virou filme na direção de Fernando Meirelles, por causa da questão filosófica do que se consegue (e deseja) ver (no conceito de crenças, padrões e costumes sociais). Não aceitar o amor entre duas meninas pode ser entendido como uma cegueira. E se levantarmos um dos pontos dos estudos da neurociência de que todo nosso olhar é uma ilusão e uma criação de nossas sinapses, então a consequência de ver por dentro não é um fardo tão grande assim. E é quando nosso protagonista 

E como já foi dito, a interiorana construção naturalista da mise-en-scène de casualidade editada da câmera próxima, às vezes quase “mosca”, na cena do forró, por exemplo, e da imagem, que ora dura um pouco mais, ora ganha cortes rápidos, nos convida a participar mais organicamente dessas vidas expostas; e nas cenas de intimidade, extende o riso, o olhar e o pensar de suas personagens (que têm o mesmo nome de seus atores), especialmente do protagonista Bruno (Bruno Jefferson, que interpreta de forma precisa e irretocável, tendo a polêmica Fátima Toledo como sua preparadora de elenco). Nós assim sentimos os anseios, as dúvidas existenciais, os medos, as liberdades, as defesas auto-protetoras e as projeções aos limites gerados pela condição ocular degenerativa de Bruno. 

Podemos inclusive evocar as palavras do cineasta soviético Sergei Eisenstein, em seu livro “O Sentido do Filme”, que definem essa atuação principal intrínseca por “autenticidade da esfera da técnica interior do ator”. “É o estado, a sensação, a experiência sentida, em consequência direta em grau máximo de expressividade”. Sim, um ator deve naturalizar seu personagem a ponto dissociá-lo da própria construção. E Bruno Jefferson faz, assim como a personagem de sua mãe, de sua amiga, de sua crush, de seu professor, e até mesmo os passantes da cena da feira.

“Saudade Fez Morada Aqui Dentro” é sobre uma adolescência “interrompida” por uma doença, mas também atravessada por preconceitos: machismo, homofobia, a dificuldade das escolas em lidar com a inclusão social. O que o filme quer mostrar, pelo viés ficcional de alto cuidado técnico da produção, é que a vida de Bruno não acabou. É apenas uma nova fase de adaptação. De usar outros olhos. E de que “Saudade até que é bom, melhor que caminhar vazio” (“Sonhos”, de Caetano Veloso). Mas para isso é preciso que não só a sociedade esteja preparada, e sim todos nós, pelo exercício da solidariedade, empatia e humanização. E tudo muito bem conduzido pela música “Meu Bem”, de João Gomes. 

4 Nota do Crítico 5 1

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