Reflexão
Começar de novo
Por João Lanari Bo
Festival de Veneza 2022
“Reflexão”, dirigido pelo ucraniano Valentyn Vasyanovych em 2021, é um filme seco e premonitório. Imagens lentas, simétricas, sóbrias – ao todo são apenas 29 planos – nada acontece e tudo acontece. A ação se passa em 2014, ano da anexação da Crimeia pelos russos, ano que de fato marca o início da Guerra da Ucrânia – em 24 de fevereiro de 2022 ocorreu a escalada do conflito para o nível absurdo que persiste até hoje, sem vislumbre de paz. Em 2014, separatistas pró-Rússia nas províncias ucranianas de Donetsk e Lugansk tomaram prédios do governo ucraniano e proclamaram as regiões como “repúblicas populares” independentes. Até a invasão de 2022, chamada de “operação especial” por Putin, cerca de 14 mil pessoas tinham morrido em combates no Donbass – como é conhecida a região, na parte oriental do país – entre separatistas e forças ucranianas. A Ucrânia acusou a Rússia de apoiar os rebeldes militar e financeiramente, acusação que Moscou sempre negou, apesar das evidências em contrário.
Como representar a guerra no cinema? Ou melhor, como representar uma guerra em pleno curso, objeto de cobertura diária dos órgãos de imprensa, mesmo em um país longe do conflito, como o Brasil? Claro, o ponto de vista de “Reflexão” é o do país agredido, a Ucrânia, com população e capacidade militar inferiores à do país agressor, a Rússia. Mas com tratamento diferenciado: a opção do realizador, que também é o diretor de fotografia, foi manter o enquadramento estático e distante dos acontecimentos. Não há close-ups, planos de detalhe ou qualquer ênfase visual – a ação se desenrola vagarosamente diante do espectador, não é preciso artifícios para transmitir o sofrimento de alguém que está sendo torturado, ou mesmo o dilema moral interno do médico que decide acabar com a vida da vítima da tortura a fim de poupá-la de mais sofrimento.
“Reflexão” conta a história de Serhiy (Roman Lutskyi), cirurgião que decide voluntariar-se depois de uma rápida conversa com sua filha, a adolescente Polina (Nika Myslytska). Olga (Nadia Levchenko), sua ex-mulher e mãe de Polina, tem como parceiro atual Andriy (Andriy Rymaruk), soldado que retorna brevemente do front para uma semana de descanso. Polina pergunta por que seu pai não se alistou no exército: ele interioriza a dúvida, e na próxima sequência acompanhamos, de dentro um carro de combate adentrando território inimigo, Serhiy consultando o GPS de orientação – que falha, no signal. Capturado, é torturado sob as ordens de um comandante russo, até que suas habilidades médicas o tornam útil, nem que seja para atestar morte de prisioneiros. A câmera, esse objeto sagrado do cinema, permanece fria e distante, sem virtuosismos – Vasyanovych começou na atividade cinematográfica como fotógrafo. Não obstante, ele resiste e filma de forma quase prosaica, a espera da consecução dos eventos.
É como se a forma do filme reproduzisse, em alguma medida, a frieza dos torturadores, realçando o fato de que, afinal, esse terror não demanda sensacionalismos para ser efetivo. Ao contrário do lugar comum das cenas de tortura no cinema, carregadas de simulações, gritos, expressões de sadismo – no filme em tela a composição formal do quadro convida a uma observação fundada em uma impossibilidade de intervenção ou movimento. O limite, entretanto, foi atingido: a segunda parte da narrativa acompanha Serhiy na volta ao convívio familiar, em um contexto pós-traumático. Ele é portador de informação sobre Andriy que vai impactar o destino das pessoas próximas, filha e ex-mulher. Começar de novo, a sequela insuportável para os que habitam o cenário das guerras.
O exercício da profissão de cineasta, nesse contexto patético que é a Ucrânia contemporânea, é um drama à parte. Como financiar os filmes, como viabilizar as produções em uma economia de guerra? Por outro lado, no início do conflito Valentyn Vasyanovych juntou-se a um grupo de realizadores ucranianos para exigir boicote cultural à Rússia, a fim de limpar o mundo da propaganda de um Estado terrorista. Sabemos que vários diretores russos se opõem frontalmente à decisão de Putin – caberia então um boicote total, envolvendo a todos, sem exceção? Não é uma questão fácil: Sergei Loznitsa e Kirill Serebrennikov são dois nomes conhecidos no Ocidente que se opuseram a essa radicalização. Fundamental é manter a produção e construir a memória cinematográfica, para contextualizar os horrores que se desenrolam na antiga república soviética, como ressaltou o The Guardian ao relacionar 20 filmes indispensáveis produzidos na Ucrânia após a queda do Muro de Berlim.
O trabalho anterior de Vasyanovych, “Atlantis”, de 2019, se passa em um ambiente ficcional distópico em 2025 – a guerra da Ucrânia terminou em 2024. O filme foi rodado em Mariupol, à época uma aprazível cidade à beira do Mar Negro – hoje um cenário distópico real.