Razões Africanas
Música e ancestralidade
Por Vitor Velloso
Mostra de São Paulo 2024
Alguns projetos são tão ambiciosos em suas temáticas que sua maior dificuldade é conseguir alinhar os diferentes assuntos e perspectivas em algo que possua um desenvolvimento que faça sentido diante de sua própria multiplicidade. A ambição de “Razões Africanas” é impressionante, costurar um documentário musical que explora as raízes africanas de três gêneros icônicos: o blues do Mississippi, a rumba de Havana e o Jongo do Rio de Janeiro, investigando as conexões e singularidades desses ritmos, percorrendo seis países e acompanhando as histórias de três personagens principais.
O problema é que sua estrutura didática e expositiva, aos modos de uma certa padronização televisiva, em razão da montagem, assinada por Juliana Nicolini e Jefferson Mello, não consegue compreender os caminhos para que possa transitar entre seus personagens e universos sem soar desconexo ou aleatório. Assim, o longa salta entre os territórios e musicalidades sem nenhum tipo de diretriz aparente, apenas acreditando que sua base temática é o suficiente para realizar a costura entre diferentes universos, estéticas e depoimentos, que são ocasionalmente atravessados por falas acerca da história dos africanos escravizados e suas diferentes formas de resistência. Contudo, essa conexão não funciona, pois esse núcleo histórico soa quase sempre descontextualizado das falas dos personagens. Além disso, quando saltamos de uma história particular do Mississippi para um ensaio em Havana sem nenhum tipo de transição, “Razões Africanas” demonstra não encontrar formas de traçar uma estrutura que permita uma costura entre diferentes culturas, com exceção das breves exposições históricas para criar um grande guarda-chuva. Aos 25 minutos é a primeira vez que o espectador consegue enxergar alguma conexão sólida entre os universos.
A partir deste momento, o filme retorna ao seu padrão e salta entre os países, músicas e personagens sem uma intenção de aproximá-los na montagem, utilizando as inserções da professora Ynaê Lopes, Escritora e Professora de História da Universidade Federal Fluminense, como uma espécie de apoio para tentar unir os fragmentos, dando a constante sensação de uma pesquisa mal estruturada e que depende das referências/citações para manter algum tipo de ordem, mesmo que tardia em seu tempo de projeção. Contudo, o documentário tem o mérito de conseguir trabalhar com estéticas diferentes entre as expressões, se adaptando aos territórios e culturas, o que não cria uma padronização entre os depoimentos, performances e músicas, contribuindo para a multiplicidade, com a mesma raiz, que faz parte da argumentação geral do projeto. Então, conforme acompanhamos as características de cada música, sua história e toda sua base cultural, podemos nos aproximar de nossos personagens, seu cotidiano e os espaços referidos por eles, mesmo que de forma desordenada.
A imersão em “Razões Africanas” depende do quão disposto o espectador está em atravessar essa confusão inicial e de sua linguagem excessivamente expositiva, com transições questionáveis e uma estrutura que parece de episódios para um programa televisivo que foi compilado em um único documentário, repleto de um didatismo realmente carregado. Se o público relevar esses tópicos, terá uma boa experiência com o filme, já que sua proposta é de cobrir parte da história e da cultura musical, social e humana dessas expressões artísticas ao redor do mundo. Não é possível mensurar a importância do projeto ou a quantidade de informações novas que ele apresenta para o espectador, mas é notável o esforço realizado pela produção ao abarcar a maior quantidade possível de referências para compor essa estrutura.
É possível relevar parte dos problemas de “Razões Africanas” mas é muito difícil não se incomodar com a estrutura fragilizada de conexões diretas entre seus núcleos e sua forma engessada de apresentação. Em qualquer contexto essa obra cumpre uma lacuna importante da cinematografia brasileira, mas dentro da memória de um passado político recente no Brasil, torna-se ainda mais importante que haja a circulação de obras que compreendam a ancestralidade do povo negro e como a cultura se estabeleceu ao longo dos anos, suas formas de resistência e expressões de dor através do tempo e da contemporaneidade.