Mostra Um Curta Por Dia - Mes 10 - abril 2024

Rapito

Deus e o sequestro divino

Por Fabricio Duque

Durante o Festival de Cannes 2023

Rapito

É incrível como muitos cineastas italianos sempre seguem com os temas religiosos da Igreja Católica e suas consequências psicológicas em seus fiéis, especialmente a culpa gerada por às vezes se distanciar de Deus. Sim, logicamente essa massificação divina não vem de agora. Foram anos de repetição no imaginário popular dos “perigos eternos” de se cometer “pecados” contra a fé. Cada vez o cinema italiano buscou mais questionar toda essa “crença cega”, baseada em um “livro sagrado”, e acabou gerando a estética da transcendência metafísica ao incorporar todos os estímulos advindo da reiteração desses mandamentos celestiais pelo meio em que se vive (os membros da família – principalmente os mais idosos – e os outros próximos do lugar). Um desses veteranos que corroboram esses temas é o realizador Marco Bellocchio, com 83 anos ativos, que nasceu em Bobbio, uma comuna italiana da região da Emília-Romanha, a dez horas de ônibus de Roma. Em “Rapito”, exibido na mostra competitiva a Palma de Ouro do Festival de Cannes 2023, Marco volta a trazer todos esses questionamentos religiosos, entre o racional lógico, a “blasfémia” de “usar o Santo Nome de Deus em vão” e uma latente constatação de uma ingenuidade no comportamento dos italianos, que potencializam sensibilidades e emoções.

“Rapito” também se desenvolve com o característica marcante de seu realizador: construir uma narrativa fabular de sonhos vividos, como se fosse uma experiência sonâmbula em transes-viagens acordadas. Aqui, o filme já se inicia na ação e no drama de uma tragédia, contudo há um humor direto de acidez verdadeira para lidar com o desespero, com o Papa esperando, com a ida para Roma. “Rapito” desenvolve-se por uma narrativa temporal, de elipses-épocas, pelas formalidades tradicionais, como o “batismo de Jesus” para “salvar o judeu”, que está “no limbo”, envolto em um visual barroco com imagens que parecem quadros de obras-de-arte. O filme também acontece por “alfinetadas”: o pesadelo do padre é outro exemplo. Marco cria uma sequência de ataques e defesas para argumentar a ideia de Cristo e uma possível “lobotomia” que todos esses “adoradores” receberam. 

É trazido também um ensaio à humanização, argumentando que todos eles, da arquidiocese e o povo são imperfeitos do mesmo jeito. São egoístas, invejosos, mercenários, mentirosos, solitários e com desejos impuros, assim como todo e qualquer ser vivente na Terra. “Rapito” quer então “libertar o Cristo”, tirar todos os pregos, dar vida novamente. E se os pais não permitirem que seus filhos judeus sejam batizados pela Igreja Católica, então essas crianças são “entregues” como bens ao Papa Pio IX. Elas ficarão longe de suas famílias “hereges” que se recusam a “aceitar” o Cristianismo. O filme conta essa história real que perdurou anos e aumentando a crueldade sádica de uma Instituição que nunca aceitou Jesus como judeu. Um paradoxo. 

“Rapito” é um épico de uma criança (Edgardo) que foi “raptada” em Bolonha  pela Igreja (por ser um judeu e batizada secretamente pela babá quando era bebê – e e a lei papal é inquestionável: essa criança deve receber uma educação católica) e que cria a síndrome de Estocolmo. Não só esse jovem se conforma com a situação em que se encontra, como mais e mais cria elos e co-dependências com a Instituição que a “recolheu” e mais e mais se afasta de seus verdadeiros pais. Nisso Marco Bellocchio é mestre: em tecer toda essa causa e consequência emocional, em que conflito está na contradição desses sentimentos. Solidão vira sequestro. Medo vira submissão.

Seu diretor sabe como ninguém conduzir verdades e segredos de forma tão coloquial e orgânica. Dentro de toda essa ficção intimista e pessoal, que perpassa pela História real da Itália, encontramos um ultra realista teatro filmado, em que até mesmo reações físicas são transpostas com o máximo de veracidade visual. Toda essa luta da família em recuperar o filho, apoiada pela opinião pública e pela comunidade judaica internacional, ganha uma histórica dimensão política. Sim, “Rapito” quer passar a mensagem de que esta é mais uma dos escândalos-extrapolações do poder da Igreja Católica baseada na culpa eterna do nascimento (pela “lavagem cerebral” da figura aterrorizante do inferno)  e de que os membros papais são canais diretos do plano celestial. E o Papa, o representante de Deus na Terra. 

3 Nota do Crítico 5 1

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