Rambo III
Observador Participante Demais
Por Jorge Cruz
A trilogia original do personagem se encerra com o trágico “Rambo III”, dirigido por Peter MacDonald. Seu trabalho está longe de ser o que há de pior no filme. É até uma pena que tenha ficado marcado por essa tragédia em sua estreia na cadeira. Peter era um experiente operador de câmera à época, mas conseguiu dirigir apenas mais três longa-metragens, se saindo um melhor no papel de produtor, onde atua até hoje.
O maior equívoco de “Rambo III” é elevar seu protagonista ao estrangeiro que aplica seu olhar estigmatizado, chegando para resolver os problemas de um grupo ao qual não faz parte. Essa maneira de se estruturar um roteiro é comum em Hollywood e vem perdendo forças por conta das críticas aos estereótipos reforçados na qual ela necessariamente precisa se basear. O cinema de ação é mestre em usar esse expediente para entregar um plot simples, de fácil assimilação, que não deixe dúvida acerca do vilão a ser combatido.
Ocorre que a franquia de John Rambo, mesmo transitando entre áreas de conflito do Oriente e retratando as aventuras de um ex-soldado dos Estados Unidos, nunca usou essa tática. Ela é ainda mais preguiçosa do que aquela que a dupla James Cameron e Sylvester Stallone fez em “Rambo II: A Missão”. Ao traçar o caminho do protagonista como o homem branco que irá começar a “salvar” o Afeganistão após nove anos de ataque russo, o personagem surge como figura de propaganda do Exército dos Estados Unidos de forma bem mais agressiva. Não sem antes manter a ideia do Rambo reativo, argumentando que “a guerra dele acabou”, como se ele estivesse sempre no lugar errado na hora errada. Uma condução do destino que os showrunners de “24 Horas” (2001-2010) usariam desmedidamente para justificar novas temporadas.
O roteiro de Sheldon Lettich e Sylvester Stallone já inicia sua trajetória com uma incongruência. “Rambo III” começa mostrando o protagonista lutando nas ruas em troca de dinheiro para, depois, sugerir que ele busca um caminho mais pacifista. Contradição feita para ser uma desculpa para Trautman (Richard Crenna), que deu o treinamento que transformou John em um matador compulsivo surja novamente. Seu objetivo é convencer Rambo de que ele é uma máquina e que qualquer tentativa de não ser violento e destruidor tende a falhar. Convencido desse destino, Rambo aceita que o Afeganistão conhecerá seu poder de mensageiro do caos. Não à toa, Lettich seria um roteirista de quinta categoria. Emplacando no ano de 1988 dois projetos (além deste é dele o texto de “O Grande Dragão Branco”), passaria a década de 1990 entregando material genérico para Jean-Claude Van Damme, até ressurgir em 2015 com “Max: O Cão Heroi”, produto que dispensa apresentações.
“Rambo III” é incipiente em seus propósitos, mas o que mais agride o espectador é a visita de campo do protagonista. Conduzido pelo menino Hamid (Doudi Shoua), há cenas que transformam a missão de Rambo em uma city tour, onde é repetida de forma constante como é sofrida a vida do povo local. Há um longo discurso de um nativo totalmente deslocado das cenas rápidas e rasas de toda a franquia, apenas para atestar a condição do boina-verde como salvador daquelas pessoas. Porém, como John é alguém que não consegue articular muita coisa, seu comportamento parece remeter ao do chamado Observador Participante, conhecida forma de pesquisa da Antropologia. A diferença é que ele está ali para matar a maior quantidade possível de pessoas e toda aquela resenha não muda em nada seu pensamento.
Até o meio do segundo ato o longa-metragem é completamente desprovido de ação, o que o torna ainda mais intragável. A trama parece uma infinita preparação para o clímax, tentando descer pela goela do espectador o quão sofrido é o Afeganistão e porque os Estados Unidos não têm nada a ver com isso. De fato, a Primeira Guerra Civil do Afeganistão, iniciada em 1979, foi marcada pela invasão soviética. Também ficou conhecida pelo apoio norte-americano a grupos anticomunistas, que sairiam do conflito com poderio bélico considerável e implantariam o regime Talibã assim que a ameaça russa fosse afastada.
Nesse contexto, “Rambo III” chegou aos cinemas, dois anos antes do início da Guerra do Golfo. É possível que a plateia tenha visto certo desgaste na franquia, mas também nessa abordagem específica dentro do gênero de ação como um todo. Com orçamento de 63 milhões de dólares (19 milhões a mais que o longa-metragem anterior), faturou nos Estados Unidos apenas 54 milhões. Tirou seu custo apenas com a força da figura de Stallone no mercado internacional, onde rendeu 135 milhões de dólares. Visto vinte anos depois, foi a produção que pior envelheceu na franquia, com um ritmo que transforma a experiência de assistí-lo nos dias de hoje ainda mais tortuosa.
Em boa parte do tempo, a direção de Peter MacDonald não consegue ser mais do que protocolar. Porém, quando o filme chega àquele que era seu único objetivo, o ato final como uma longa e eletrizante cena de ação, seu bom trabalho finalmente aparece. As sequências finais de “Rambo III” talvez sejam as mais espetaculares da franquia, tanto que o dedo chegou a coçar para a cotação do longa-metragem ser um pouco melhor. Mas a produção em toda a sua estrutura é falha e ainda brinda o espectador com duas breguices imperdoáveis ao final. A primeira é a dedicatória “ao valente povo do Afeganistão”, o que o torna ainda mais propagandista e chapa-branca o longa-metragem. A segunda é a versão de motel que Bill Medley fez para “He Ain’t Heavy, He’s My Brother”, que serve mais para embalar a madrugada dos amantes do que de trilha para os créditos de um filme de ação.