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Plano 75

Mercado, morte e vida

Por Letícia Negreiros

Festival de Cannes 2022

Plano 75

Nossa existência é reflexo de nossas escolhas. O que Chie Hayakawa propõe em “Plano 75” é que temos menos controle do que imaginamos. O longa nos presenteia com uma narrativa melancólica, pondo em perspectiva a idade e a morte. No Japão de Hayakawa, 75 anos é a data limite de importância de uma vida. Dali em diante, o governo japonês não só incentiva como proporciona os meios para eutanásia. Com o devido esforço, se consegue pensar em motivos plausíveis tanto para se viver quanto para se morrer. Ao final, o que impera é o desejo e o deslumbre com a experiência de existir. Não há como escapar à morte. É a única certeza em nossa vida. Sendo assim, vivemos em função disso e, paradoxalmente, é o maior medo de muitos. Conforme o fim se aproxima, se cria essa ideia de desgaste, de invalidez. A figura do idoso se torna repulsiva a alguns, sinônimo de derrota. Uma casca vazia e sem finalidades. 

“Plano 75”, antes de qualquer coisa, refuta esse imaginário posicionando-a na situação que lhe é negada: vivendo. O trabalho, claro, vem da necessidade. Mesmo assim, se expõe a vontade de continuar batalhando pelo direito de existir. Indo além, nos deslumbra com sequências que não deveriam causar deslumbre. Acompanhamos Michi e seu grupo de colegas de trabalho em seu cotidiano. Vão ao karaokê, fazem compras juntas, dormem fora. Têm vontades e ânsias. Em um universo onde a existência idosa é parcialmente recebida com crimes de ódio, essas mulheres encontram umas nas outras um refúgio e um espelho dessas necessidades. Também refletem nossas necessidades e vontades. Ao acompanharmos seu cotidiano, nos tornamos cúmplices delas. Todos amamos, desgostamos, temos paixões. O desconforto diante o Plano 75 – medida do governo que incentiva a eutanásia – vem, então, de dois fatores: o correto imprimido em nosso imaginário social e o sentimento pelas figuras apresentadas na tela. 

A ruptura ao apego à vivacidade é repentina, mas não surpreendente. Ineko, talvez a única verdadeira amiga de Michi, morre, sozinha, em casa. Ineko deixa Michi sozinha nesse mundo. A partir de então,  “Plano 75” nos lembra que, por mais que se batalhe pelo existir, as configurações sociais para se existir são o maior inimigo do idoso. Em um sistema em que se valoriza o capital e a produção, todos são vistos como mão de obra e compradores. A vida se torna menos valorosa diante da possibilidade de produtores jovens e ativos. Quanto mais velho, mais inútil. Michi se vê envolta por uma penumbra de dúvida. Abandonada pelas outras colegas, sem familiares ou perspectivas de futuro, apela ao Plano 75. É agonizante vê-la hesitante, guiada apenas pelo desespero. Não há amparo. Sua idade é, para aquele mundo, uma sentença. Ela apenas age conforme esperado.

“Plano 75” apresenta mais duas narrativas paralelas, a de Hiromu e a de Maria. Ele é um agente do Plano. É um trabalho como outro qualquer, até que seu tio o requisita. Hiromu vê-se em um dilema. O dever com o trabalho e o dever com sua família – mesmo só percebendo a importância e valor de seu tio tarde demais. Tudo o que lhe resta é a culpa; ele também se deixa guiar pelo desespero. É catártico ver que, ao final, ele – provavelmente – é preso por aquilo que o faz para ganhar a vida. Sua história se entrelaça com a de Michi. Ele lhe vendeu o Plano. Ela foi a última pessoa vista por Hiromu antes de seu fim. Mesmo não sendo um personagem tão carismático, sua culpa corrói. Somos quase obrigados a sentir empatia por suas medidas extremas. Seus atos desesperados são pedidos de desculpas que caem em ouvidos mortos. 

Finalmente, há Maira. Mudou-se para o Japão por sua filha doente nas Filipinas. Precisa de dinheiro. Ela, eventualmente, vira funcionária na empresa do Plano 75. Até então, seu papel na narrativa é meio incerto. Reforça a ideia de que se vive em função da morte – neste caso, trabalhando para evitar o falecimento da filha. A própria criança, sem nome ou rosto, traz um paralelo melancólico: não tem controle sobre quando morrer, mesmo que também esteja batalhando pelo seu direito de existir. Mesmo assim, a impressão passada é de que existe em função de uma única interação com Hiromu. 

Ele se torna memorável por sua culpa hipnótica. Ela se perde facilmente mediante os idosos levados pelo Plano, sendo ofuscada pelos dilemas dos outros dois. Michi é a única personagem que verdadeiramente tem um atrativo próprio, em sua solidão e em seu amor à vivacidade. “Plano 75” dá a cada um deles o final que merecia. Michi sobrevive à desvalorização de sua vida. O deslumbre com a experiência de existir gritou mais alto. O espectador é deixado com o eco de um dilema ético. Já que não todas, quais vidas são valiosas? Mas também lhe resta um dilema existencial. Até que ponto a minha vida é realmente valiosa?

3 Nota do Crítico 5 1

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