Pecadores
Quando ele bateu à porta
Por Vitor Velloso
O sucesso do novo filme de Ryan Coogler não é por acaso, tampouco pode ser justificado apenas sob a égide do argumento de que “trata-se de uma história original em meio a tantas continuações e refilmagens”. A tentativa desesperada de encontrar um argumento inequívoco — como uma bala de prata (com o perdão do trocadilho) — para explicar de forma definitiva o alvoroço provocado por “Pecadores” soa ingênua ou mal-intencionada. Nesse gesto, além de não se mencionar a trama do longa e o êxito do diretor em conduzir essa narrativa, há uma menção excessiva, exaustiva e tola aos recentes fracassos de projetos envolvendo encapuzados superpoderosos e seus baixos números de bilheteira. Falemos, pois, do filme — e não do mercado.
Aliás, se você dança com o diabo, um dia ele volta pra casa com você. A construção em torno de como o blues representa um rasgo no véu entre o mundo dos vivos e dos mortos — seja através da literalidade, da musicalidade ou da historicidade, com Robert Johnson e outras figuras de destaque da música — é feita de forma explícita e concreta em “Pecadores”, com aquele que negociou a finitude com o diabo batendo à porta de uma festa ancestral, de sorrisos estampados e liberdade, ainda que limitada, por pelo menos uma noite. A explanação do início do filme, sobre como os melhores cantores de blues são capazes de se elevar à dualidade metafísica, não é apenas necessária para o espectador compreender o poder de Sammie (Miles Caton), mas também todo o campo — e embate — cultural presente na construção do projeto.
Em uma das cenas mais bonitas do ano, Coogler decide quebrar o protocolo histórico das representações contextuais e atravessar gerações, continentes e séculos para demonstrar as raízes culturais de seus personagens em tela, explicitando as reverberações contemporâneas do blues e da cultura preta. Esse exercício é feito através da dissolução do real, da retomada da narração inicial (com um breve e necessário acréscimo) e da apresentação brilhante de um conflito entre vivos e mortos que não se sustenta apenas no elemento fantástico, mas tem base histórico-cultural.
Quando Remmick (Jack O’Connell) canta “Pick Poor Robin Clean” e dança com os outros mortos uma coreografia irlandesa, estabelece-se um conflito cultural claro, em que os contrapontos são apresentados através desse vampirismo — aqui literal — com um eixo comum entre os dois campos: o cristianismo. Aliás, existe uma frase de Remmick que apresenta um elemento histórico de grande importância para compreender o fator religioso como mediador desses personagens, desse conflito e dessa narrativa.
“Pecadores” é capaz de ser um entretenimento que propõe camadas de debate, acerca de identidade, decisões e moral. Não por acaso, o roteiro, assinado por Ryan Coogler, faz um esforço para diferenciar os gêmeos Fuligem e Fumaça (interpretados por Michael B. Jordan), ainda que haja um desenvolvimento mais cuidadoso de um dos irmãos. Nesse sentido, conforme somos apresentados às diferentes personalidades de cada um, torna-se mais evidente a escolha de trabalhar os aspectos dramáticos de forma desigual, pois suas características são diametralmente opostas, e em um deles há uma margem maior para demonstrar a importância dos laços familiares, perdas, crenças e questionamentos com o “outro lado”.
No fim, “Pecadores” consegue ampliar seu escopo para uma multiplicidade enriquecedora, reverberando temáticas com alguma facilidade e recusando representar a violência como um espectro unilateral — ou melhor, invertendo a base comum do cinema produzido pela grande indústria. Em nenhum momento vemos uma violência física de brancos contra negros (com exceção de uma cena de ação), mas somos recompensados com a catarse do oposto. Essa postura política e moral do filme em relação aos seus personagens e aos conflitos vividos por eles transforma a experiência em um poderoso jogo de relações — seja sobre identidade, religião ou poder. Até mesmo quando o caos está instaurado, a mera menção de uma comunhão com o diabo, antes vista como mitológica, passa a ter um sentido político e cultural. Afinal de contas, essa proposta de homogeneização possui base histórica e, como diz Delta Slim (interpretado por Delroy Lindo): Os brancos gostam de blues, eles só não gostam de quem canta.
O interessante “efeito” “Pecadores” no cinema e seus excelentes números de bilheteria podem ser compreendidos através de uma série de perspectivas, mas, antes de debater mercado, é necessário falar da eficácia do filme, de todas as suas qualidades — e só depois refletir sobre números. Aliás, o presente sucesso do longa, logo após todo o último ano protagonizado por Kendrick Lamar no rap, apenas reforça a força dessas raízes — como a identidade e a autoafirmação sobre as diferenças, sobretudo culturais, revelam os verdadeiros abutres por trás das narrativas. E o gesto de peneirar um membro da Klan antes de aceitar o destino é fabuloso.