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Paloma

Da realidade para a realidade

Por Paula Hong

Paloma

Inspirado em uma notícia de jornal, “Paloma” é o sexto longa-metragem do diretor pernambucano Marcelo Gomes. A partir de um recorte específico, o filme é uma lupa que tangencialmente direciona atenção a uma vivência que é muito cara ao Brasil de falar sobre, pois segue sendo o país onde a violação grave de direitos humanos contra pessoas travestis e transexuais acontece de modo exponencial. E apesar da intencionalidade de assegurar que mais histórias como a de Paloma (Kika Sena) seja trazida para o centro de narrativas/representações no cinema, Gomes opta por se ater à verossimilhança cruel no lugar de reinscrevê-la em uma história cujo vislumbre de felicidade e realizações pessoais, por mínimas que sejam, não sejam sustentadas somente por idealizações da personagem. 

A cena de abertura do filme “Paloma” guia quem assiste pelo som para então mostrar em plano fechado e escuro um momento de intimidade entre a personagem principal, Paloma, e seu namorado — mais tarde no filme “noivo” e então, marido — Zé (Ridson Reis). Em seguida, a vemos no banho, espumas do shampoo simbolicamente a envolvem num véu de noiva — esta cena dá o tom do “conto de fadas” que Paloma irá tentar concretizar, apesar dos desencoragamentos que encontra no caminho. Os afetos (amizades, dentro de fora do trabalho, e família) que a permeiam servem de combustível frente à realidade que constantemente quebra o ideal lapidado em sua cabeça: casar-se em uma cerimônia tradicional católica. 

Ao longo da obra, somos apresentados ao óbvio: a existência de Paloma, por si só, torce narizes e desvia olhares, isso quando não recebe outros que traduzem palavras desprezíveis, e afasta possíveis relações mais afáveis, porém frias e distantes, que contrastam com o clima do local. E são essas violências “sutis” e afiadas que tentam acumular uma catarse que nunca chega de fato. Ao contrário, elas somam-se a uma série de acontecimentos que subtraem e afastam cada vez mais a personagem de seu sonho. Mas iniciativas para realizá-lo vêm de Paloma (nunca do seu namorado, diga-se de passagem) e a colocam como uma mulher e mãe forte, determinada e focada, chutando para longe as pedras que insistem em aparecer na estrada árida que percorre no interior de Pernambuco, pois nem a recusa da autoridade máxima da igreja católica, o Papa, desmotiva a personagem de seguir com seus planos. 

O filme não maquia a discordância entre os anseios lapidados de Paloma e a realidade que insiste em colocá-los abaixo. Entre tantos incômodos presentes na obra, como violências gratuitas, uma delas levando à morte de uma das amigas da personagem principal, mais um deles é a insistência da personagem para com a oficialização da relação entre os dois, a qual o seu parceiro não corrobora de imediato e parece “forçado” a concordar com a ideia dela — aqui remete muito bem aos casamentos cis-heterossexuais em que a noiva é encarregada de conceber, planejar e realizar toda a cerimônia e o noivo segue com sua vida paralela à relação. Ele oferece pouco ou nenhum suporte (emocional), mas parece não ter problemas em transmitir os desejos físicos que tem por ela em momentos aleatórios, enquanto que Ivanildo (Zé Maria), colega de trabalho de Paloma, parece nutrir um interesse genuíno por ela, apesar da curiosidade inicial ser expressa numa cena tensa e desconfortável quando Paloma vai fazer xixi na mata, e que transpassa o físico. Os dois têm uma breve relação que o deixa esperançoso em levar para frente, mas a personagem mantém-se focada no que realmente quer.    

Apesar de tudo, Paloma e Zé se casam, mas não há final feliz. Toda aquela idealização é de fraca concretude, pois tão logo é colocada abaixo quando uma reportagem sobre seu casamento traz depoimentos de familiares de Zé e demais habitantes da região que mostram-se contra a união dos dois: é dado a eles voz e oportunidade de transmitirem o que realmente acham, como se a hostilidade não se fizesse presente no cotidiano de Paloma. Ela insiste (uma recorrência muito presente no filme) para que Zé não dê ouvidos ao que falam deles, inclusive seus amigos que o zombam, mas ele escolhe ir embora. Paloma também vai embora, infelizmente tendo de deixar para trás família e trabalho, pois a realidade a convence de que não há espaço (físico e metafórico) para ela realizar seus sonhos.

Por fim, o filme “Paloma” de forma estética tenta nivelar-se com a leveza, sensibilidade e positividade que a personagem segue a vida frente às adversidades enfrentadas, mas o roteiro, assim como a realidade, desnivela tudo. E também risca em abrir margem para generalização de vivências trans: o sonho de encaixar-se e fazer parte do que é colocado como normativo quando a sociedade constantemente (re)lembra essas pessoas que suas existências não são aceitas como normal e muito menos benquistas, jogando-as ainda mais para a tangente.

2 Nota do Crítico 5 1

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