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Os Incompreendidos

O Sublime Personificado

Por Daniel Guimarães

Os Incompreendidos

Pela primeira vez revi o filme. É assombroso que, após os minutos finais de uma revisita, você tenha a mesma reação do primeiro momento: perplexidade e falta de respostas. O “filme da vida” sequer passa perto da objetividade e é, de forma inerente, algo muito pessoal. O momento em que vimos, como nos relacionamos com os temas da obra, com uma cena ou até enquadramento específico. Se, ao aparecer “fim” na tela, se pegar completamente admirado diante da imagem, é possível que tenha sido uma experiência única. Isso é “Os Incompreendidos” para mim.

Primeiro (e melhor) de uma série de cinco filmes dirigidos por François Truffaut (O Último Metrô”, Fahrenheit 451), aqui acompanhamos Antoine Doinel (Jean-Pierre Léaud) enquanto ainda criança. O jovem garoto, agindo de acordo com sua idade, é constantemente punido. Em casa, na escola ou basicamente em qualquer lugar, a reação à sua presença é a repressão, com métodos “educacionais” dos mais grotescos, inúteis e agressivos possíveis. Como poucos, o longa-metragem representa a essência de uma realidade de maneira palpável. Invade o psicológico de um personagem e de fato transmite suas percepções, que exalam na tela. Tendo como inspiração sua própria infância, Truffaut a materializa perfeitamente.

A alegria, as dúvidas e a melancolia de Doinel são genuínas e extremamente pessoais. Partindo das primeiras cenas em que se constrói o universo daquele jovem, deixa-se claro o alvo de “Os Incompreendidos”: o autoritarismo de adultos frustrados, no auge de seus egos, que somente se realizam exercendo sua posição de poder sobre aqueles que não podem se defender. Em seus falsos moralismos, agem em busca de valores absolutamente distorcidos de disciplina e ordem, reafirmando a manutenção do poder estabelecido. O professor, de métodos fascistas, não enxerga o essencial em um processo de aprendizado: educação só é real se compartilhada, de forma a aflorar as potências criativas de seu educando. No momento em que se tenta, através de seu despotismo fálico de “educador”, impor doutrinas a jovens, o processo educacional deixou de existir, dando espaço ao mecânico e ao sistemático, aprisionando a criação e o singular.

Evidente que essa produção vai além do retrato crítico do sistema escolar infantil e, de forma absolutamente personificada em Doinel, busca falar sobre o desenvolvimento e compreensão de jovens enquanto seres em constantes aprendizados e experiências. Seus pais jamais o enxergam como outro, vislumbrando obter novas experiências e aprendizados no próprio processo de criação de um filho. Pelo contrário, o negligenciam, se convencendo de seus próprios discursos de autoridade, vendo-o como uma obrigação imposta, acreditando estar na ordem e no comando a chave para uma criança “educada”.

Em sentido técnico, Truffaut e sua montadora Marie-Josèphe Yoyotte são impecáveis em uma condução narrativa alternada, de causas e consequências, se movimentando de um ritmo a outro, do prazer ao abatimento. Um filme crítico do início ao fim pode ser cinematográfico e questionador e existem infinitos exemplos de excelentes obras no estilo, porém a proposta de “Os Incompreendidos” é outra. Tendo em vista que a abordagem concreta do diretor consiste em sua relação com o pessoal e o real, uma alternância de momentos é necessária como um retrato da vida de um jovem perdido. Assim, portanto, Doinel irá ter momento de prazer com seus pais, assim como irá se divertir com seu melhor amigo em suas – claro–  idas ao cinema. A trilha sonora dita em uma perfeita sincronia a compatibilidade das cenas com as emoções que se transmite. Sem jamais apelar e chamar comoção para si mesma, é perfeito elemento de clima e atmosfera, potencializando a imagem que acompanha. Soam-se melodias alegres enquanto correm felizes pelas ruas de Paris ou melancólicas de uma criança que, em seu quarto, é obrigado a ouvir seus pais discutirem sobre largá-lo em algum lugar.

Esse fluxo de idas e vindas na história é somente presente nos dois primeiros atos, pois o terceiro se solidifica como uma escalada autoritária sobre o personagem, em forma de clímax. O plano onde escorre uma lágrima pelo rosto de Doinel ao ser conduzido em um carro de polícia é emblemático nesse sentido. Uma criança que é ignorada e nunca ouvida pelos pais, reprimida pelo seu professor e até prejudicada por seu melhor amigo. Está isolada e agora presa, levada para um reformatório. Evidentemente, dentro da lógica narrativa, a maneira de se reintegrar o jovem é a mesma que acaba por mandá-lo para lá: violência e fascismo.

O desfecho de “Os Incompreendidos” é tão icônico que é quase impossível escrever algo original. A sequência final em que Doinel foge (mais uma vez) do reformatório e se depara com a imensidão do mar é um dos motivos da perplexidade citada no começo do texto. O simbolismo na sequência não é dos obscuros, de análises e comentários para intelectuais se aprofundarem. É vivo, puro e emana seus significados na narrativa. Enxerga-se o absurdo em alguém que esteja passando por tantas opressões na formação de sua personalidade, tenha passado por tão poucas e simples experiências, como ver o mar. Após o genial plano que o segue correndo e congela em seu rosto, o que Doinel fará agora? Podemos sentir a vastidão daquele espaço, o peso que cai em suas costas por estar desamparado e sozinho. Porém, por incrível que pareça, agora ele parece finalmente solto no mar que tanto sonhava ver, tomando por si as atitudes e as rédeas de sua própria vida. Para uma pessoa dessa idade, é cruel e triste, mas, se comparado às correntes em que se encontrava, também libertador.

É simplesmente inconcebível que um ser humano tenha feito, de “Os Incompreendidos”, seu primeiro filme.

5 Nota do Crítico 5 1

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