Os Escravos de Jó
O exemplo do ano
Por Vitor Velloso
Crítico convidado pela Mostra de Tiradentes 2020
A abertura da 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes não podia ter sido menos comentada, “Os Escravos de Jó” novo filme de Rosemberg Cariry (de “Notícias do Fim do Mundo“) foi o assunto da noite.
Com participação de Antônio Pitanga, homenageado da mostra esse ano, o filme é uma parábola tragicômica de tudo que o cinema brasileiro vem errando nos últimos anos. Sendo assim, é possível categorizar o longa como um exemplo exímio a ser lembrado, mas pela sua forma de construção televisiva e canhestra.
Como tentativa de arrojo político, Cariry impõe à narrativa uma conjuntura diversificada de personagens que são plurais em suas trajetórias, enquanto busca costurar suas histórias como uma questão contemporânea da política brasileira. Mas concretiza isso, forçando ao máximo seu projeto, buscando um didatismo desnecessário. Cada linha de diálogo busca jogar ao espectador uma carga política histérica, que acentua ainda mais um retrato descompensado que se tem da classe artística. As interpretações são impulsionadas pela fragilidade assombrosa do texto, assim é fácil reconhecer em cada expressão a necessidade de se encerrar a tomada.
Exibicionismo fetichista, simbolismo de superfície, um culto à cultura barroca, tudo isso transforma “Os Escravos de Jó” em uma obra que não sustenta a razão de existir, pois parece tão preocupado em agradar um setor da sociedade, que acaba deixando de falar sobre o Brasil e suas relações políticas. Essa tentativa de ser imediatista transforma cada minuto do filme, em uma peça pueril de gangrena intelectual que cita Deleuze em uma mesa de bar, com risadas desconcertadas de Rocco Pitanga, enquanto se discute o processo do “Transbarroco”, posterior a uma aula dada em dois minutos por uma professora que exibe o nome de artistas num slide.
Ao concretizar essa necessidade de citações excessivas, Cariry implode todas suas ideias em um academicismo de quinta e projeta sua ideia de mise-en-scène (e aqui faço questão de deixar a expressão europeia, em homenagem a militância da personagem que insiste em pronunciar Deleuze corretamente) em toda uma construção vazia que assume uma característica televisiva e conceitua o cinema digital como um gatilho instantâneo de encenação direta, atravessando de uma cena à outra com uma velocidade que a própria narrativa não consegue compreender em sua estrutura. Logo, toda a questão desconexa que paira na obra, não é apenas uma quebra da história, mas uma clara falha formal que desconstrói toda as intenções iniciais.
E tudo isso alinhado com a histeria descabida do discurso político, que parece vir de um surto de necessidade de falar frases prontas para gerar uma euforia simples no cinema, uma estratégia que Kleber Mendonça Filho assume em seus filmes, com a diferença brutal de estar consciente de como fazer isso. “Os Escravos de Jó” aplica em qualquer espaço que acha essas construções batidas acerca de temáticas políticas nacionais, exemplo quando absolutamente do nada, uma frase sobre a ditadura brasileira é jogada durante uma conversa. Ou na aula de restauração, quando estão comentando sobre um novo bombardeio, um personagem cruza o diálogo para expor dados e números de mortos. Além disso, há uma problemática grave quando buscam uma comparação entre a violência no Brasil e a violência no Oriente Médio.
Os problemas de “Os Escravos de Jó” não são esporádicos, eles fazem o filme, que infelizmente se torna inconcebível. Não à toa, o número de desistências durante sua projeção foi revelador, pois quanto mais se busca justificativas para permanecer na sala, mais o espectador se encontra afundado na poltrona esperando um acontecimento precoce interromper a tragédia anunciada na tela.
Entre Édipo, poesias árabes traduzidas, exibição na internet, imigração e debates pós-coloniais tirados de doutorandos de internet, a película parece ceder a todas as tentações burocráticas de sua concepção e despenca do altar flácido e volátil de uma política de realização que não compreende as mudanças que ocorreram no país e no cinema. Estagnado numa ego trip com cadência européia, o filme de abertura da 23ª Mostra de Tiradentes expõe a decadência de um setor cinematográfico, que não possui estrutura para falar o que deseja, nem coragem de apontar o dedo pra quem precisa ouvir. Cariry realiza seu pior filme e concretiza o medo de alguns, a velha guarda do cinema se torna reacionária em forma e acaba enveredando o Brasil para o lado contrário que deseja.