O Senhor dos Mortos
Mortalha Digital
Por João Lanari Bo
Festival de Cannes 2024
“O Senhor dos Mortos”, filme que leva a inconfundível assinatura body horror de David Cronenberg, estava desenhado para ser uma série na Netflix, que a rejeitou. O diretor reagiu: Senti que não podia deixar isso morrer – e concluiu no formato longa-metragem, em 2024. Terá sido o canadense derrotado por um algoritmo do streaming? Por anos, a Netflix contou com capital de risco ilimitado para financiar suas compras. Agora que está secando, em parte devido a taxas de juros mais altas, precisa apertar o cinto. Provavelmente a conjuntura beneficiou o produto, que ficou, digamos, mais conciso, algo que foi “cortado” e/ou “reduzido” ao essencial.
Mas, o que é o essencial na obra de Cronenberg? Seria tarefa impossível sintetizar aspectos em um conjunto tão amplo de filmes no espaço da crítica de um filme isolado, mas vale o risco – nem que seja para propósitos retóricos. Por exemplo, erotismo e morte é um binômio constante, deflagrador de um sem número de derivações, naturalmente. Experimentos que alteram o corpo, ou que se introjetam no corpo, ou que fragmentam o corpo com intenções “científicas”, marcam suas produções. São situações extremas que se chocam, formando uma espécie de híbrido entre ficção científica e horror, com uma pitada de psicanálise que paulatinamente foi crescendo em suas narrativas – chegando a “Um Método Perigoso”, baseado na relação entre Freud e Jung e a relação íntima do segundo com uma paciente.
Em “O Senhor dos Mortos” o limiar da morte é mais uma vez visitado, com uma ambientação tecnologicamente onipresente. Jack Morgan, um teórico da “biologia do horror” no cinema e na literatura, insiste que o horror nasce quando tomamos consciência de que o nosso corpo é um organismo vivo. Talvez seja essa a sensação que atormenta Karsh Relikh (Vincent Cassel), levando-o a abandonar seu ofício de produtor de vídeos industriais e criar a Gravetech, empresa especializada em mortalhas equipadas com sensores que escaneam os corpos que revestem. Para lidar com o luto da mulher dizimada pelo câncer, mudou de ramo e construiu um cemitério que permite às famílias acompanhar em tempo real a putrefação dos cadáveres. O diferencial do novo negócio de Karsh é o gozo do monitoramento, enfim, o último estertor da consciência vivente.
Mas, hélas! O mundo tecnológico dessa nossa era conectada é implacável, constatamos isso diariamente nos cliques compulsivos. O cemitério é vandalizado e a infraestrutura computacional da empresa é alvo de um ciberataque que bloqueia acesso ao feed das mortalhas. A princípio a suspeita cai sobre os eco-terroristas, que defendem a cremação dos corpos e são contrários ao fetiche da decomposição dos corpos, mas nenhum grupo reivindica o ataque. A paranoia aumenta: seriam os chineses, sempre à espera de uma oportunidade para roubar dados e perfis de inocentes cidadãos, mesmo que estejam mortos? E mais, antes da transmissão ser cortada pelo ataque informático, surge uma imagem escaneada com um detalhe bizarro, pequenas excrescências no esqueleto da mulher de Karsh, Rebecca (Diane Kruger).
“O Senhor dos Mortos” flutua em torno dessas hipóteses pouco esclarecedoras, enquanto Karsh delira durante à noite com Rebecca mutilada pelo brutal tratamento – sexo e morte. Rebecca tinha uma irmã gêmea, Terry, que gostava, aparentemente, de ter os mesmos parceiros de Rebecca. Adepta de teorias conspiratórias, ela sugere que as pequenas excrescências nos ossos da irmã se assemelham a sensores de vigilância. Diana Kruger também interpreta Terry, logo o ato sexual que perfaz com Karsh resgata o corpo (ou a imagem do corpo) de Rebecca como contiguidade ontológica com o objeto representado, na linha do famoso ensaio de Andre Bazin, “A ontologia da imagem fotográfica”, publicado em 1945.
Nessa altura do campeonato, como nos em um bom filme de Cronenberg, qualquer opção pode ser a pior. Gravetech está em vias de se tornar mais uma rede de vigilância de nossa privacidade, mesmo que estejamos em uma outra dimensão, a pós-vida. Cadáveres serão transformados em fonte de lucro pela acumulação de dados, em mais um desdobramento da biopolítica – estratégias e mecanismos que o poder utiliza para regular aspectos da vida, como saúde, natalidade, mortalidade e higiene, como informa a Wikipedia.
Em meio a tantas mutações, resta uma certeza, de acordo com Bazin (na tradução de Hugo Mader):
Por outro lado, o cinema é uma linguagem.