O Farol
Não mate a gaivota
Por Vitor Velloso
Durante a Mostra de São Paulo 2019
A desolação é um dos temas recorrentes no gênero do horror, não só pela exposição do objeto e do personagem às inúmeras possibilidades do vácuo, mas acaba permitindo o trânsito dos pensamentos em meio ao ócio ou a rotina, fragilizando a psique até que esta se quebre e concretize a vulnerabilidade da mente e do ser humano. Assim, “O Farol” percorre uma trilha de frenesi diante da sedução do medo, enquanto sublinha com destreza a necessidade de um escape direto em meio à realidade volátil, não por um fator físico, mas com a atenuante virilidade de um enérgico complexo do desconhecido, trazendo à tona tradições e um misticismo próprio.
No primeiro quadro o longa desloca o espaço e o tempo a uma única âncora na imagem, um farol que surge lentamente em meio ao mar e à névoa. A construção inicial demonstra um apreço por uma decupagem disciplinada, com planos rígidos em sua maioria, mas que propicia uma ambientação fora de uma burocratização da narrativa. Enquanto Ephraim Winslow (Robert Pattinson) encara a câmera em primeiro plano, Thomas Wake (Willem Dafoe) observa dois passos atrás e adentra a casa que os abrigará ao longo de sua estadia lá. O ato de atravessar a narrativa com este olhar, nos diz à respeito da natureza do filme que Robert Eggers (de “A Bruxa“) irá construir, fugindo um protocolo dramático a missão é clara, centralizar as duas figuras unilaterais em uma trama que se fragmenta de acordo com a progressão do medo, ou mesmo das atitudes de ambos em relação ao temor. Essa relação se torna cada vez mais clara com o decorrer da projeção, revelando o distanciamento da violência inerte e dos desejos pessoais, mas que a escalada para ambos é sinuosa e não necessariamente paralela.
O horizontalismo que o diretor propõe em “O Farol” é a decorrência de uma diretriz sólida do trabalho, não dando margens à vislumbres que comprometam a concretude do imaginário. As distorções destas noções primárias, ocorrem na postura fálica da câmera em retratar o objeto que dá título ao filme, à vertigem da subida, para o mesmo, e a sinuosa proposição etílica de uma comunhão menos tortuosa, que acaba relacionando drasticamente o tangenciamento da geografia local com a psique dos faroleiros. E a função deste trabalho é o que rege grande parte da estrutura proposta pelo cineasta, desde sua sedução através da forma, que acompanha o cotidiano de maneira disciplinada, até a noção fágica daquilo que atravessa a comunhão de um passado e de uma História que os isola em ciclo vicioso. O viço de uma mitologia que rompe a barreira da materialidade é o empuxo da realidade diante dos desejos individuais.
Uma constante no trabalho de Eggers, que busca um retorno a essência da sedução pelo medo e a reação imediata ao mesmo. Logo, a verve da linguagem utilizada traduz essa disparidade na própria mise-en-scène e interpretação, onde um ápice dessa reatividade narrativa, não se consolida como recurso dramático, mas sim como objeto trágico, e aqui, fálico, de uma forma que permite o estoicismo como distorção do real em prol do estancamento de uma coreografia constante durante a projeção. Para isso, o diretor utiliza a música como costura dessa lógica de construção, ainda que de maneira uníssona, a atmosfera se forma com essa constante que viabiliza as volatilidades das transições de seus protagonistas.
A fotografia de “O Farol” maximiza os contrastes, a fim de intensificar as sinuosidades de cada corpo naquele espaço-tempo, configurando uma noção própria da imagem. A encenação quase rítmica que surge no ecrã é fruto da relação dos enquadramentos com a rigidez do cenário, que traduz o vácuo que a centralização causa.
Com suas óbvias inclinações à Lovecraft, Eggers realiza um trabalho singular na cinematografia contemporânea, entregando uma inquietação dramática que explode sazonalmente na construção. A sexualização das relações no filme, expõe a necessidade trágica desse fulgor de impulsos violentos, que resulta na retomada daqueles que se foram, exigindo com veemência que a tradição seja mantida e a memória preservada. Se enterrarmos as duas, nos restará insanidade e podridão.
Afinal, traiçoeiro é o homem, o mar é uma constante.