Mostra Um Curta Por Dia 2025

O Diabo na Rua no Meio do Redemunho

A versão metafísica cinematográfica de Guimarães Rosa no universo do teatro filmado

Por Fabricio Duque

Assistido Durante o Festival do Rio 2023

O Diabo na Rua no Meio do Redemunho

Há muito tempo o cinema já entendeu que precisava se desvencilhar de rótulos e gêneros e estreitar os espaços entre as artes, como por exemplo, o teatro, que não só ofertou uma nova forma narrativa, mas também uma outra linguagem de experimento visual. Isso pode ser pensado como uma descaracterização da essência da criação ou como uma moderna ressignificação. Talvez nunca saberemos, mas uma coisa não se pode negar: nenhuma das duas artes foi a mesma desde então. Ao filmar a experiência teatral, o espetáculo fica eternizado e preso dentro de uma única apresentação. Assim, inúmeros ensaios são feitos até a direção do filme gritar “Ação”. É, pois é, mas a BBC conseguiu criar uma indústria dessa nova fusão quando gastou toneladas de libras, construindo cenários imponentes e escalando milhares de figurantes. Sim, por mais que se tente nunca ninguém conseguirá chegar aos “pés dessa rainha”. De vez em quando, sempre aparece uma nova tentativa, como é o caso do Brasil com “Diabo na Rua no Meio do Redemunho”, exibido no Festival do Rio 2023 . Sua diretora Bia Lessa busca navegar junto com outra adaptação cinematográfica da renomada obra “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa, que ganhou recentemente uma nova e polêmica versão com “Grande Sertão”, de Guel Arraes, filme este que abriu o Festival CinePE deste ano. 

“Diabo na Rua no Meio do Redemunho” busca ser apresentar como uma experiência sensorial. A narrativa, mais sutil, pauta-se numa estética metafísica conceitual de fábula mais realista. Aqui, a trama é uma trincheira de guerra. Seus atores, de figurino monocromático, atravessam cenas teatrais com a presença perceptível da câmera que, em sua condução balé, acompanha seus personagens, que inclusive quebram a quarta parede, se interferindo em monólogos que encontram a metalinguagem de existências encenadas. A obra em questão segue a linha estrutural do dramaturgo e escritor irlandês Samuel Beckett, por conjugar o real, o lúdico e a representação de uma ideia. A história traz as mesmas questões universais que todo e qualquer ser humano enquanto indivíduo pertence a qualquer sociedade sofre: a ânsia dos desejos, a necessidade da sobrevivência, o alerta contra perigos, a dissimulação da própria persona em relação ao outro, as reviravoltas do caminho, o medo do invisível, a prestação de contas com o divino, a culpa pelo próprio nascimento e a constatação da figura de que todos sem exceção são miseráveis por natureza. Em “Diabo na Rua no Meio do Redemunho”, todos os seres parecem mortos, moribundos, zumbis andantes que apenas gastam o tempo restante de uma vida sem sentido e/ou gados à espera de novas ordens. 

A narrativa de “Diabo na Rua no Meio do Redemunho”, em planos-sequência, também lembra em muito o filme “Dogville”, do realizador dinamarquês Lars von Trier, mas com típicas brasilidades, com cara, sangue, suor e alma tupiniquins: baião, sanfona, buriti, por exemplo. Toda essa construção de teatro contemporâneo em tela, a la William Shakespeare, traz a atmosfera do primitivo, do instinto emocional, do passional sem regras, envoltos no limbo submundo entre a figura do céu e do inferno. A obra aqui tem sotaque, gíria local e expressões idiomáticas mais populares, num misto de humor sarcástico e ingenuidade sem papas na língua de Guimarães Rosa, que conseguiu uma traduzir não só a alma do brasileiro, como a de um povo que viveu às margens das migalhas de um Sertão que não o queria. Esse mesmo povo que não “recebeu” a possibilidade de sonhar, de ter esperança, de projetar um futuro. “A vida nem é da gente”, diz-se. Para essa “gente”, a vida ainda é casual e diária, sem tempo para a “alegria”. “Diabo na Rua no Meio do Redemunho” impressiona também com a maestria da parte técnica, especialmente por nunca perder o foco da imagem (que está sempre em movimento). 

Ao ser exibido no Festival do Rio, “Diabo na Rua no Meio do Redemunho” dividiu opiniões. Sim, o gênero do teatro filmado pode incomodar, visto que a estrutura lida com quebras e “invasões” do real na ficção, criando-se uma sensação de extracampo do realismo fantástico, coloquial demais, palpável demais. Como foi dito, “Diabo na Rua no Meio do Redemunho” é tecnicamente impecável, para dar conta de refletir sobre a vida do ex-jagunço Riobaldo (em uma atuação-performance irretocável de Caio Blat – em uma entrega absolutamente surreal de um ator para sua personagem – tanto que na apresentação do filme Caio disse ser o melhor papel da vida dele) e as complexidades do bem e do mal, assim como a presença do diabo em seu universo. 

4 Nota do Crítico 5 1

Conteúdo Adicional

Deixe uma resposta