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O Desconhecido

Baseado numa história verdadeira

Por João Lanari Bo

Festival de Cannes 2022

O Desconhecido

O Desconhecido”, longa australiano dirigido por Thomas M. Wright, abre logo com a fatídica cartela: baseado numa história verdadeira. Na era do streaming, os produtores que ditam nosso imaginário audiovisual parecem cada vez mais obcecados em destacar a verossimilhança das imagens, como se não bastassem as situações engendradas pela ficção, que são, óbvio, igualmente povoadas de corpos, objetos e movimentos. Esse tópico, a verossimilhança das imagens, foi objeto de longos debates teóricos ao longo do século passado, entre outros pelo francês Christian Metz, notável pensador do cinema, hoje meio esquecido. Metz dizia:

A natureza física do significante cinematográfico mantém a impressão de realidade. Similaridade de estímulos, semelhança, presença de som e movimento, jogo em benefício da imaginação (da fantasia), daí um efeito de verdade mais verossímil do que no teatro.

O francês preferia o termo impressão ao de ilusão, porque não há ilusão real exceto no sonho. O cinema tende à ilusão da realidade, notadamente em certas ficções, mas permanece no limite. O espectador, ao se envolver com a linguagem do filme, tende a confundir níveis distintos de realidade e a perceber como verdadeiros os acontecimentos da ficção. Metz comparava a impressão de realidade do cinema à ilusão de realidade do sonho: claro, o espectador de cinema sabe que está no cinema, enquanto o sonhador não sabe que está sonhando. E ainda se mistura uma terceira impressão, a da fantasia, aceita conscientemente, em princípio. A sobreposição dos três níveis é que gera um lugar transitório, que se oferece como simulação: o cinema é a exploração sistemática desta região.

Na era da internet, da qual o streaming é tributário, essa região parece precisar de atributos que validem sua existência. A discussão que Christian Metz propõe pode ser útil, embora aqui não seja o espaço para desenvolvê-la. Seja como for, “O Desconhecido” parece, por uma dessas razões que a própria razão desconhece, afinado com a especulação brevissimamente enunciada acima. O filme inspirou-se na investigação policial da vida real sobre o assassinato de Daniel Morcombe, de 13 anos: em 2003, o jovem Morcombe foi sequestrado enquanto esperava em um ponto de ônibus. Oito anos depois, a polícia prendeu Brett Peter Cowan e o acusou do assassinato de Morcombe. Cowan acabou sendo condenado à prisão perpétua. Um livro foi escrito sobre a operação undercover: todos os nomes reais foram alterados e o filme (felizmente) não faz nenhuma tentativa de recriar a morte do menino. Em vez disso, concentra-se na relação entre o policial disfarçado, Mark Frame (Joel Edgerton), e o criminoso, Henry Teague (Sean Harris). Cores reduzidas, composições estilizadas e ligeiramente descoloridas, criam zonas de indefinição na tela, como se os personagens se movimentassem em um mundo contaminado com a interioridade perversa do crime – e a direção de Wright esmera-se para fazer com que os personagens se sintam, ao mesmo tempo, presos dentro de si mesmos. Mark sonha, mais de uma vez: sua angústia sobre seu trabalho parece terrivelmente real, confundindo o mundo interior com o exterior. Na estrada, no espaço aberto – a Austrália interior é uma planície sem fim – Mark e Henry passam boa parte do filme. Às vezes, linhas brancas estimulam um ritmo visual; em outra cena, a câmera permanece no carro que os transporta, mas corta do dia para a noite, condensando o tempo. Rostos ocultos em diálogos agregam incertezas, mas, curiosamente, nossa impressão de realidade se intensifica: não há explicações claras nem ambiguidades previsíveis, como de resto seria de esperar em uma narrativa baseada numa história verdadeira.

O Desconhecido” não é um filme convencional – até mesmo os policiais que trabalham nos bastidores, juntando as peças para construir um caso, não se apresentam de forma convencional. Sabemos que a história é real, mas o que se nos aparece é um labirinto. A tragédia, entretanto, perdura: quando o roteiro estava em desenvolvimento, os produtores abordaram a família, mas foram rechaçados. Depois da estreia na mostra Un Certain Regard, em Cannes 2022, os pais de Daniel publicaram uma declaração:

Essa terrível narrativa ignora a dor de nossa família e escolhe lucrar com a morte de Daniel Morcombe, de 13 anos. De forma distorcida, também fornece oxigênio a uma fera sádica, naturalizando seus atos malignos. Indivíduos que ganham dinheiro com um crime hediondo são parasitas.

Tudo isso se passou em Brisbane, Austrália.

3 Nota do Crítico 5 1

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