Nóis por Nóis
Frágeis abraços no social
Por Fabricio Duque
Durante o Festival do Rio 2018
Não há como fugir. Só existem dois caminhos a seguir quando se traça linhas analíticas sobre uma obra cinematográfica de nacionalidade brasileira: a condescendência amigável-cúmplice e a dureza intransigente radical. A primeira beira como uma mãe que passa a mão na cabeça do filho, acreditando incondicionalmente em seu talento. A outra, também familiar, ganha contornos de um inflexível pai que educa com rigidez absoluta e unilateral. Não, não há meio termo. O realizador francês François Truffaut, um dos pais da Nouvelle Vague, já abriu mão do ofício da crítica para fazer filmes, porque não queria mais falar mais mal de ninguém. Sim, é um caminho árduo e desconfortável, visto que os críticos, com suas subjetividades técnicas, decretarão futuros e mercados. O que todos esquecem que não há só o afagar ou o massacrar, mas o ensinar. Explicar racionalmente e com conhecimento o motivo do desagrado. Confesso que ao assistir o novo filme do diretor Aly Muritiba, “Nóis por Nóis”, que codirige com Jandir Santin, integrante da mostra competitiva do Festival do Rio 2018, eu intensifiquei minha opinião do olhar com demasiada passionalidade quando escolhi o longa-metragem como o pior da mostra carioca. Aqui, estas linhas possibilitarão que eu possa embasar minhas percepções.
“Nóis por Nóis”, que também é título de uma música homônima do grupo A286, é o que denominamos de filme urgente. De cinema direto e mais bruto, que se preocupa muito mais com o conceito que sua forma. Ainda que suas subtramas sejam perdidas no contexto, a mensagem social está claro, vibrante e discursiva, desenvolvida por uma narrativa de cotidiano orgânico e as missões-responsabilidades diárias de ajudar a família, classe média baixa, em uma sociedade hostil e opressiva e com as limitações da comunidade. Assim, para que se crie esse cenário de teatralizar o social, é preciso também que se abra mão da naturalidade. A ficção é potencializada a fim de fornecer suporte e diretriz à história. Aly Muritiba constrói um cinema só seu, particular e caseiro, com seus ruídos e barulhos captados diretamente, e que soa mais como amadorismo que propósito. E, critica o próprio ambiente, por ter sido um agente penitenciário, e agora, usa a metalinguagem, de uma personagem filmando os policiais “dando dura” (“tem o direito por estar no espaço público”).
Mas há um limite inalcançável. Uma fronteira velada de apenas retratar o que já está no imaginário popular. Como se fosse uma zona de conforto (um dos policiais é “sensato”), quase importada de “Tropa de Elite”, de José Padilha, em que ingenuamente desvirtua e compara o barulho dos tiros com as de um jogo violento de videogame. Sim, mais um gatilho comum e já condicionado. “Nóis por Nóis” é o que podemos chamar de “filme mano”, mas em Porto Alegre, que estimula uma “espera teatral”, uma hesitação do pensar. É uma “clientela de produtos”, que não vão ao “Procon” e sim à “vizinhança”. Há também uma humanização mais orgânica da ilegalidade, buscando assim um embasamento às práticas ilegais. Tudo potencializado pela agilidade da narrativa, de estrutura de novela, mais direta, como se filmasse com um celular, sem criar silêncios e forçando as situações-ações. Em alguns momentos, a captação do som fica difícil de entender: muito grave ou inaudível, principalmente na competição de Rap e/ou nos fogos.
“Nóis por Nóis” quer viver a sinestesia do que mostra, adentrando no universo deles (com seus anéis, cordões, ostentações, tatuagens e “tretas” com as redes sociais) parecendo até mesmo uma versão abrasileirada do realizador Spike Lee (quando provoca o discurso crítico das polícias de seguranças da internet). Mas aqui os desencontros são desengonçados, como se o filme ainda estivesse em processo de ensaio. Proposital? A retórica não é tão simples de descobrir. E então, novos desdobramentos-reviravoltas acontecem, por exemplo, o dinheiro para o teste de gravidez (“Tem certeza que é meu?”, pergunta-se). É um filme de muitos queres e caminhos (aqui, a máximo de que o menos é mais não existe – criando uma comparação com o intimista primeiro filme “Para Minha Amada Morta”), de esquetes com pontas soltas e que inicia uma nova sem encerrar a anterior. Nós entendemos qual o objetivo. Entendemos que é preciso criar uma mise-em-scène mais disfuncional, decadente e de submundo criminal. De mundo-cão. Sim, porém o resultado ganha contornos de escolhas fáceis, de frágeis clichês mal elaborados. A fotografia cria o clima obscuro e soturno para tentar criar intimidade e inclusão. Nós somos imersos uma sucessão de desgraças e “afundadas na lama” do protagonista. E cada vez aumenta a sensação de moralidade politicamente correta. Um conservadorismo sensível e dramático demais. O público encontra-se à deriva em ilha completa. Vazia e desgovernada. Com seus fades longos e a segunda parte, à moda de “A Vizinhança do Tigre”, de Affonso Uchoa. Mais agressivo. Mais histérico. Mais gratuito. “Todo mundo nasce para matar e para morrer”, diz-se com mais efeito. Alguém pergunta: “Você está chapado?”, e por sua vez pode servir como uma luva a toda representação fílmica. E o mais prevalece. Sempre aumentando um ponto no tom já sem equalização. Ora com novas questões sociais. Ora com novos gatilhos. Policiais, negros, travestis, pobres… Um manancial “salada mista” com “atores naturais”. “Fizemos um amplo processo de casting e depois de preparação com a molecada do RAP e do movimento negro da cidade, que junto com atores e atrizes profissionais nos ajudaram a dar forma ao roteiro”, finaliza Aly Muritiba.