Sem Chão
Ainda estou aqui
Por João Lanari Bo
Festival de Berlim 2024
“Sem chão” é um documentário dirigido a quatro mãos sobre a tragédia que se arrasta na Cisjordânia, território ocupado por Israel desde 1967, após a Guerra dos Seis Dias – um palestino ativista, Basel Adra, e um jornalista israelense, Yuval Abraham, foram os realizadores. Também integraram essa corajosa equipe Hamdan Ballal e Rachel Szor, ele palestino e ela israelense. O adjetivo “corajosa” não é força de expressão – é um dado concreto da realidade.
“Sem chão” foi feito para furar o bloqueio midiático sobre o que se passa com os palestinos na Cisjordânia. O violento ataque do Hamas em outubro de 2023 – e a resposta totalmente desproporcional israelense que se seguiu – catapultaram o conflito na região para um novo e inédito patamar. Entre a Faixa de Gaza e a Cisjordânia, entretanto, a distância é maior do que os poucos quilômetros que os separam, em território israelense. Gaza é governada pelo Hamas, Cisjordânia pela Autoridade Palestina.
À luz do controle governamental da coalizão de direita em Israel, que abriga partidos extremistas favoráveis à expulsão e/ou aniquilamento de todos os palestinos nos territórios ocupados por Israel, ninguém sabe o que pode acontecer. A ascensão de Trump, sempre imprevisível e superficial, só piora o quadro.
Masafer Yatta – onde foram gravadas a maioria das imagens do filme – é uma região com 19 aldeias no sul da Cisjordânia, perto de Hebron. Em 1980 a área foi denominada “Zona de Tiro 918”, a ser usada pelo exército para treinamento militar – apesar do então Primeiro-Ministro, Ariel Sharon, ter declarado explicitamente que o objetivo seria viabilizar a expulsão dos residentes locais. Em 2022, depois de longo processo judicial e intimidações de toda ordem, a Suprema Corte autorizou a expulsão da população de pelo menos 8 aldeias, mas de mil pessoas. A Corte, sob ataque do governo Netanyahu – tal como ocorre em outros regimes autoritários, direita ou esquerda – acabou cedendo às pressões dos colonos e respectivos partidos políticos.
Basel Adra nasceu em 1996: sua primeira lembrança é de soldados israelenses invadindo sua casa e prendendo seu pai. Adra tinha apenas cinco anos – e a partir desse momento todos os episódios violentos que testemunhou foram documentados, fotos e vídeo, para sua, e dos demais, proteção. Comecei a filmar quando começamos a terminar, afirma, repetindo as palavras de seu pai. Tratores demolindo casas, famílias vivendo em cavernas, manifestações duramente reprimidas e ataques de milícias de colonos – tudo é filmado. Na concepção de “Sem chão” está presente o impulso do registro como mobilização permanente, da preservação da memória como condição de sobrevivência.
Yuval Abraham cruzou com Basel em 2019, quando surgiu a ideia do projeto. Fluente em árabe – que aprendeu, entre outros, com seu avô judeu iemenita – Yuval tornou-se crítico ferrenho da ocupação à medida em que investigava casos como o de Masafer Yatta. Mas é voz minoritária em Israel, que já foi um país governado por um forte partido de centro-esquerda, o histórico Mapai – hoje Partido Trabalhista, que ocupa apenas quatro das 120 cadeiras do Parlamento. A solução dos 2 Estados para Israel e Palestina, projeto engendrado pela centro-esquerda trabalhista em diálogo com os palestinos da OLP – e que era (ou foi) uma possibilidade factível – colapsou com o assassinato de Yitzhak Rabin, em 1995, por um fanático religioso.
Basel e Yuval mais do que dirigem o filme, eles próprios são personagens e partícipes dos eventos que se sucedem. No limite da violência institucionalizada, se estabelece um diálogo entre Yuval e interlocutores palestinos, sobretudo Basel – raio de luz efêmero na paisagem destruída dos vilarejos. Para se ter uma ideia do clima, a casa da família de Yuval Abraham em Israel foi ameaçada por uma multidão após ele pedir cessar fogo em Gaza e fim do apartheid e desigualdade na Cisjordânia, ao receber prêmio no Festival de Berlim, em 2024. Foi acusado de “antissemitismo” por políticos da direita alemã.
Embora ainda exista um percentual significativo da população em Israel contrária às práticas de ocupação – apesar de não se traduzir em peso político efetivo – a polarização, a exemplo de outras paragens, tende a radicalizar-se.
A proposta de Trump de transformar Gaza em uma “Riviera” traz embutida uma noção asséptica de visualidade, que vê o mundo através da Fox News – o pietismo do Presidente apenas sugere que os palestinos serão “realojados” e vão ter condições de moradia bem melhores. Gaza, ou a imagem da Faixa de Gaza no imaginário trumpista, ficará limpa, etnicamente limpa.
Do lado palestino, o sofrimento é perene – Basel Adra esforça-se para manter a clarividência. Em entrevista à publicação Indiewire, afirmou:
Espero que este filme seja visto, realmente visto, por muitas pessoas. Isso significaria muito para nós, e esperamos influenciar as pessoas: não apenas para mudar suas mentes, mas para movê-las a agir e nos manter, em suas mentes, vivos.