No Lugar da Outra
Liberdade pela prisão
Por Pedro Sales
Desde 2004, o dicionário Oxford elege anualmente a palavra do ano. Se algum dicionário de língua portuguesa também elegesse, com certeza, de 2019 para cá, a palavra “empatia” apareceria em alguma das ocasiões. O termo que significa capacidade de sentir o que outra pessoa sentiria pauta a rodagem de “No Lugar da Outra“, até mesmo no nome. Em sua primeira incursão na ficção, a diretora Maite Alberdi, documentarista de mão cheia duas vezes indicada ao Oscar de Melhor Documentário, mantém sua abordagem humanista para contar a história da conexão entre duas mulheres. Apesar de ser a primeiro longa de ficção da chilena, em “Agente Duplo” (2020), flertou um pouco com o mocumentário. Já em “A Memória Infinita” (2023) explorou a ditadura no país sob perspectiva pessoal, a partir do Alzheimer do jornalista Augusto Góngora. As indicações vieram com esses dois filmes.
De certa forma, nos dois documentários e em “Hora do Chá” (2014), a diretora faz um mosaico de diferentes histórias. Em “Agente Duplo” e “Hora do Chá”, são histórias pessoais de idosos e idosas que evidenciam como atravessaram décadas no país. “A Memória Infinita” também caminha no mesmo caminho da pessoalidade, com acréscimo do reconhecimento da história do próprio país. Neste longa de 2024, representante do Chile para o Oscar de Filme Internacional, Alberdi, naturalmente, centraliza a narrativa, mas ainda assim entre duas mulheres. A cineasta estende a análise da história chilena do antecessor ao explorar o episódio real em que a escritora Maria Carolina Geel (Francisca Lewin) assassinou o amante em 1955. O caminho da romancista cruza com o de Mercedes (Elisa Zulueta), uma secretária jurídica envolvida no julgamento do crime.
O estabelecimento de “No Lugar da Outra” é feito em contrastes. Mercedes acorda com o ronco do esposo Efraín (Pablo Macaya), arruma-se, prepara o café da manhã para ele e os filhos. Para ela, sobra pouco, às vezes nada, mesmo assim, deve ir para o tribunal onde trabalha. A monotonia da burocracia jurídica é quebrada quando um assassinato acontece no luxuoso Hotel Crillón, restrito à alta sociedade e, sobretudo, homens. A escritora atirou à queima-roupa no peito do amante. Arrependida, beija o cadáver caído no chão. Por mais contraditório que seja, a diretora constrói Maria Carolina como uma mulher livre, mesmo com a posterior prisão, e Mercedes como uma mulher presa, aqui pelas amarras do machismo e da sociedade patriarcal. Em certos momentos, inclusive, Maite Alberdi pesa a mão e deixa as situações repetitivas para amplificar o senso de abandono da mãe e esposa dentro da própria casa. A liberdade de Mercedes, então, surge quando, sob o pretexto de buscar roupas para presa, ela passa a frequentar o apartamento da escritora e de fato ficar no lugar dela, quase como em “Amores Expressos” (1994), de Wong Kar Wai.
A ambientação dos anos 1950 é extremamente cuidadosa, mas não se restringe à reprodução e adquire caráter expressivo. Na própria casa de Mercedes, as cores são cinzentas a fim de demonstrar essa opressão doméstica pelo patriarcado, ao passo que o apartamento de Maria Carolina é solar e bem iluminado. Sozinha com os livros, roupas, maquiagens e joias da escritora, a secretária jurídica é mais feliz. Mais uma vez o contraste, a prisão de uma garante a liberdade da outra. A câmera de Alberdi examina a conexão das duas por viés de resistência e posteriormente admiração. Da mesma forma que Mercedes olha deslumbrada para o teto do Crillón, ela encara o rosto da assassina em um misto de temor e curiosidade, dramaticamente filmado em câmera lenta. A reconstituição do crime, também, é estilizada. Os depoimentos se alternam rapidamente com a montagem, em um efeito quase cômico, e quando vemos o assassinato em si, há desfoque nas bordas da tela que parece emular a visão limitada, conturbada e irada de Maria Carolina durante o crime passional.
Em certo momento da rodagem de “No Lugar da Outra“, um amigo da escritora explica à secretaria que Maria Carolina está pagando pelo pior dos crimes: ser artista e ser mulher. Maite Alberdi leva essa ideia para construir toda a ideia do filme. O assassinato-citação – já que a poetista Maria Luísa Bombal, em 1941, também atirou em um homem no mesmo hotel –, não é visto tanto como crime, mas como arroubo de loucura frente à dominação masculina. Esse efeito é reforçado ao passo que para Mercedes a prisão da outra representa sua própria emancipação. A interpretação de Elisa Zulueta vai do acanhado para o autoconsciente de suas qualidades. Ela passa a ser mais segura de si, assim como a escritora. Portanto, de forma empática, a secretária não apenas ocupa o lugar de Maria, mas incorpora esse aspecto da personalidade. Assim, a atuação de Francisca Lewin é mais linear, ela inicia com o olhar altivo ao ser levada pelas autoridades e continua com ele após o indulto presidencial. Maite Alberdi costura essas conexões e questiona o papel da mulher no Chile nos anos 1950 com seu olhar humanista, mas certamente sem a mesma profundidade que extrai de seus documentários, sobretudo por convenções narrativas menos potentes que a realidade em si.