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A Memória Infinita

Memória, (auto)imagem e identidade

Por Paula Hong

A Memória Infinita

Chile, um país cuja história, assim como de outros da América-Latina, é demarcado por um passado violento. No cinema, a trilogia de documentários de Patricio Guzmán (“Nostalgia da Luz”, 2010; “O Botão de Pérola”, 2015; e “A Cordilheira dos Sonhos”, 2019) destaca-se pela radiografia, sobretudo geográfica, na retratação dos assombros reminiscentes da ditadura militar no país. Indicado ao Prêmio Goya de Melhor Filme Ibero-Americano e ao Oscar 2024 de Melhor Documentário de Longa-Metragem, “A Memória Infinita”, dirigido por Maite Alberdi (“La Once”, 2014; “El agente topo”, 2020), chega como uma lupa que, dentro do mesmo eixo temático de Guzmán, amplia a luta do casal chileno Paulina Urrutia (atriz e ex-ministra do Conselho Nacional da Cultura e das Artes) e Augusto Góngora (jornalista, cineasta e apresentador de televisão) contra o Alzheimer de Góngora, como um belo — e ao mesmo tempo triste — trabalho que coloca em paralelo esforços de salvaguarda da memória e, por extensão, da identidade de um homem que tanto se empenhou e contribuiu para que seu país não perdesse as suas. 

A lente embaçada registra Paulina acordando Góngora. Muito calmamente, ela faz perguntas e as responde de modo a ajudá-lo a recobrar sua memória. Ele concorda, alegando já saber de algumas informações, como seu nome, sua profissão e quantos filhos tem. Com outras, ele se surpreende, como quando Paulina se apresenta, e lhe diz que são casados e que estão juntos há 20 anos. A lente não desembaça apesar de Góngora reconhecê-la. Embora isso possa ser lido de forma mais lógica, como falta de manejo de Paulina com o foco, esta mesma cena de abertura do filme pode ser interpretada como um prenúncio simbólico da recorrente ausência de nitidez da memória dele, e como esse embaço permanece na jornada conjunta contra a doença. 

Entre interações que acalentam e outras que não escondem a dor dos momentos mais difíceis e dilacerantes, o documentário utiliza-se de imagens de arquivo — pessoal e profissional — para remontar a identidade de Augusto Góngora, destacando como sua trajetória está intimamente ligada ao projeto de denunciar os horrores da ditadura militar no Chile, bem como vangloriar e conservar aqueles que resistiram e contribuíram para o remonte da democracia. Desta forma, temos ao mesmo tempo noção de sua relevância e a triste ironia de ser acometido por uma doença que definha a sua memória.

Alberdi elucida o terreno material e imaterial que Paulina e Augusto construíram sua união durante duas décadas. Isso é expresso na forma com que se consegue registrar a harmonia do casal, mantida com constância durante o filme. Há encanto momentâneo por eles que relembram sua história, sempre envolvendo o período da ditadura e os anos após a redemocratização. Eles flertam, se enamoram, fazem juras de amor — sobretudo Augusto que parece se apaixonar por Paulina toda vez que é lembrado quem ela é. Um tipo de amor e companheirismo que resistem e ultrapassam a bolha do esquecimento que tenta isolá-lo. Mas ele ainda tem uma vitalidade que verbalmente expressa a vontade de continuar seguindo em frente mesmo com o diagnóstico. Muitas vezes, ele dribla a condição degenerativa da doença, como quando anda de bicicleta. Nesses momentos, a câmera se mantém mais afastada, espiando através da manta invisível que os reverte, nos dando a chance de presenciar pedaços íntimos da vida a dois de Paulina e Augusto. 

Tal isolamento em “A Memória Infinita” é sublinhado pela vinda da COVID-19. Aqui a câmera é comandada por Paulina que a posiciona no tripé, ainda nos dando a chance de testemunhar não somente a beleza de seu relacionamento, mas também as dificuldades dos lapsos cansativos e dolorosos de Augusto. São nesses momentos que percebemos o quanto o Alzheimer afeta não somente a ele, mas a ela também. O temor do esquecimento se estende para Paulina, uma presença contínua.

A perda de memória cada vez mais frequente atinge a percepção de si mesmo, do que é real e o que não é. A confusão espaço-temporal que o faz pedir — às vezes implorar — por ajuda reforça a gradação cada vez mais severa de seu estado, de modo que a auto-imagem é afetada. Não há reconhecimento e sem ele, não há espaço para a confirmação de uma identidade capaz de reconhecer o outro; no caso, Paulina, com quem compartilhou tanto. Isso é expresso em como o filme coloca essas questões, capturando os momentos em que Augusto pensa que seu reflexo é outra pessoa, ou quando não reconhece a si mesmo no espelho. 

Diferente de como começou, “A Memória infinita” termina com uma carga emocional espessa. A linguagem simples do documentário conserva ternura, o companheirismo e o amor, mas é perceptível o quanto a doença sugou a vitalidade de Augusto que, ao final do filme, não faz esforço nem questão de abrir os olhos para caminhar com Paulina. De todo modo, é um gracioso retrato a respeito da memória, sobretudo emocional, como encorajado por Augusto a todos os chilenos após o fim da ditadura, (auto)imagem, identidade, resistência e amor no companheirismo de jura eterna.

4 Nota do Crítico 5 1

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