Não! Não Olhe!
Cinema de oportunidades
Por Ciro Araujo
O ego é uma coisa fantástica. Um brinquedo tão fragilizado, como uma estátua feita de vidro. É preciso lustrá-la para manter as aparências, igualmente a tratar com atenção, pois pode se quebrar. Hollywood se mantêm por ego. Amam falar sobre si mesmos, sob sua própria história, vista e revista. Claro, mais de cem anos dos maiores podres do entretenimento, como evitar? Jordan Peele também sente a atração que a Cidade dos Sonhos transmite, e decide contar sua própria ficção, “Não! Não Olhe!”, sob suas regras.
Parece tentador a princípio, durante a escrita, repassar uma linha do tempo recontando como um diretor negro assustou os Estados Unidos com dois horrores que culturalmente o cavaram dentro desse cosmos norte-americano. E de fato, Peele é um cara de oportunidades: agarrou todas as chances que apareceram e o consolidou como um cineasta que conversa com a temática social emergente e borbulhante – que agora dá as caras nos colossos do entretenimento – e um digno amante e herdeiro da sétima arte. Sua produtora, a Monkeypaw Productions vem conquistando esse território, como uma forma de relativizar a história cinematográfica. “A Lenda de Candyman”, da diretora Nia DaCosta (agora mais uma das bancadas pelo conjunto Disney e Marvel), veio para provar exatamente essas intenções.
Esse pequeno pano de fundo foi necessário: “Não! Não Olhe!” possui suas analogias descaradas na tela. O apagamento histórico hoje apenas se prova como fato, onde pessoas negras foram marginalizadas (assim como outras minorias) durante a história do Cinema. Jordan Peele sabe disso. Ele reconhece a sua oportunidade – está aí, novamente a palavra – e toma para si ao jogar na tela para sua possível casa de milhões de espectadores tais fatos. E pronto. Seu trabalho que gerou reconhecimento passa agora para outra vontade, também tão comum para os dias de hoje: a homenagem aos filmes B. Engraçado como estamos tendo uma geração recente realizando tantos tributos ao gênero. Edgar Wright fez, James Wan também. Este último poderíamos também o chamar de oportunista, realizou o que pode e mais para poder dar à luz à “Maligno”.
Através dessa sequência de ideias para acrescentar, Peele acredita tanto em sua ideia. Ele vê potencial na mistura de western com a ficção-científica (e horror). Precisou passar tanto por seus filmes como pela refilmagem de “Além da Imaginação” para algo sair dali. Seu apreço por imagens paralisadas e estranhas, que possuem o famoso “vale da estranheza” estão presentes, sempre à espera de se soltar. É uma tendência, também, do gênero. É difícil determinar quem brilha nesses momentos, porque nossos olhos quando disparados por tantas vezes esses stills estáticos de outros filmes (Ari Aster de certa forma os realiza, Robert Eggers também) está tão acostumado que não vê algo surpreendente.
Todavia, ainda há esperanças. Seu apreço pelo bizarro, nos leva à um excelentíssimo projeto de arte, seja pelo próprio design em si; ou pela câmera de cores chapadas, mas perfeita para se ver em uma grande tela; ou inclusive seus sons. Os cavalos que relincham escandalosamente criam uma sensação fantasmagórica que engana a audiência, inclusive. É necessário minutos adicionais caso alguém vá cegamente assistir a obra, sinopse excluída e tudo. E é uma experiência surpreendentemente interessante. Novamente, essa imagem bizarra, mesmo que não possua um brilho adicional por estar banalizada, ainda produz sensações.
Jordan Peele ainda possui seu amor pela comédia, desde seus dias de “Key and Peele”. E combina com o humor contemporâneo norte-americano. É irônico, sarcástico, saltado à nuances raciais. Como de praxe, uma comparação, talvez presunçosa: Peele é, em alguns sentidos dessa veia, a sequência de Quentin Tarantino. Mas a realidade é que as características de ambos se combinam. Mas a realidade é que isso permite também uma análise de “Não! Não Olhe!”. Seus personagens são típicos. Estereótipos? Ou arquétipos? Mas que seja, as atuações são do mais perfeito nível para Hollywood, onde Daniel Kaluuya é um irredutível herdeiro de uma fazenda. Introvertido, na realidade, mas próximo ao primeiro adjetivo. Vê as pessoas como animais e persegue essa ideia constantemente. Sua irmã, interpretada por Keke Palmer, um clássico inverso. Steven Yeun se prova um potencial antagonista, porém não vilão, com características também invertidas à Daniel. O vilão, de fato, maniqueísta, pois é apenas a força da natureza. E os alívios cômicos, pessoas brancas. Obviamente, propositais. Entre os vários retratos de cineastas sobre cineastas, provavelmente o filme de Peele faz um favorito contemporâneo, interpretado por Michael Wincott. O olhar tão obcecado e claramente próximo do voyeur é apenas tiração de sarro da vontade do diretor de “Não! Não Olhe!”.
Jordan Peele é um oportunista e ensina muito bem isso. Ele sabe que tem poucas oportunidades por ser negro. Então sua tática é criar cinema de entretenimento. Se antes as doses sociais foram cavalares, agora é de sua estratégia entregar pequenos comentários (mesmo que sejam batidos ou pouco desenvolvidos). Para além, também a fazer seus desejos cinematográficos. Ele já se provou, agora deseja provar um pouco de poder. Mas é tão estranho como realiza, como se não houvesse uma inerência para conquistar algo a mais. Inerte seria realmente a palavra correta para o filme, que apresenta conceitos, mas a fadiga – que não estava presente por exemplo na obra de James Wan. Se existe uma certeza da potência de Peele, por que essa incerteza de potencializar sua obra? Essa é a segunda maior questão; a maior sendo para onde os cavalos vão quando morrem.