Não Haverá Mais Noite
O preço da visão
Por Vitor Velloso
Durante o Festival Ecrã 2020
Ditar dogmas acerca de uma moral no cinema, através de seu conteúdo pode parecer um exercício reacionário (como muitas vezes é), mas trabalhar em torno de um escopo que concebe a estética, tanto por sua produção quanto na montagem, pode ser proveitoso. Aqui, claro, não trata-se de um moralismo típico de um “valor” cristão, muito menos uma reverência castradora, mas pensar em torno de um consciente determinado que é gerado a partir do filme.
Está claro que a moral de um filme não está necessariamente ligada à sua captação. A questão está propriamente em um âmbito cultural e social (com influências econômicas) e seu impacto (in)consciente na estética, em todos os níveis, é mais que fundamental para a percepção, e produção, das obras.
“Não haverá mais noite” de Eléonore Weber é algo bastante marcado no campo do cinema experimental, uma fala francesa monótona, que parece estar revelando o próximo passo do racionalismo ocidental, uma montagem lenta que em determinados momentos irá realizar pausas dramáticas para frases de impacto, uma imagem virtual para que o cinema experimental transcenda etc. É uma cartilha aparentemente funcional que segue captando alguns discípulos pelo mundo.
Straub atinge o auge da decadência política com “A França contra os robôs”, sendo o pior tipo de reacionário, o que acha que tá agredindo os outros reacionários. Obviamente que há palco pro discurso canhestro. Aplaudido por um mar de cinéfilo, o filme cíclico-decadente-pequenoburguêsintelectual foi relembrado durante este período de isolamento social por alguns. E agora, por grau de proximidade o filme de Eléonore Weber nos relembra que o reacionarismo assume formatos diferentes.
Se “foi preciso um policial morto para que o francês percebesse um argelino”, vamos ser cautelosos com “Não haverá mais noite”.
A moral anunciada no início do texto se refere explicitamente ao exercício de vermos afegãos, iraquianos e sírios sendo exterminados durante 1h16. Existe aqui um debate possível? Oh sim, que franceses retornam à utilizar da dor alheia para debater as políticas internas, sejam elas de origem estéticas ou públicas. Mas lembre-se os franceses sempre são céticos e críticos com suas próprias constituições, então falar mal da própria ação violenta é regra aqui no jogo da reverência fatalista do pensamento burguês. Façamos o favor de enchermos novamente as taças de vinho, não? Ora, sangue estrangeiro dos outros é refresco pra intelectualidade.
É preciso um exercício de Nero (no país dos outros) para debatermos a virtualidade dessas imagens criadas por tamanha brutalidade não? Ou mesmo comentar de forma profundamente filosófica, a psicologia envolvida no processo mais desumano do militarismo contemporâneo. Posso vir a concordar com a última colocação, se lembrarmos que aqueles que são literalmente explodidos em “Não haverá mais noite” não foram tratados exatamente como humanos, logo, o processo de desumanização só pode estar no assassino. Ora, não sabia que passamos a dar palco para criminoso. Por obviedade, a última frase não é acusatória, apenas uma constatação das ações do exército.
Aqui a diretora confere um olhar para esse processo, mas exerce um papel dúbio, ao usar a palavra “confusão” para se dirigir ao assassinato de camponeses, em determinado momento. A palavra, como bem sabem os franceses, possui o poder de deturpar a compreensão da imagem, não à toa os mesmos investem cada vez mais nos ensaios, pois os mesmos relativizam o texto e a imagem como fizeram seus antecessores literários com os axiomas do pensamento racionalista, logo, quando se impulsiona a virtualidade da imagem à violência inerente do imperialismo através da desarticulação verbal do que seria a “confusão”, está claro que temos uma propagação de um idealismo dessa situação, real, que segue destruindo vidas.
E é bastante notório pro leitor que não se pode vir a fazer acusação direta das ações, ali expostas, com qualquer meio da produção cinematográfica de “Não haverá mais noite”, mas podemos tentar entender as razões que levam o filme ao imbróglio intelectual da burguesia contemporânea. A superexposição da violência enquanto meio de debate para a virtualidade da mesma, e sua desumanização. Façamos então da moral um corredor cadavérico de quatro arestas, para que os dogmas, da tela ou da cruz possam ser concebidos na liberdade poética da intelectualidade decadente aqui presente. Afinal, porque não?