Não Espere Muito do Fim do Mundo
Teologicamente falando, estamos bem
Por João Lanari Bo
Festival de Locarno 2023
“Não Espere Muito do Fim do Mundo”, o héctico longa que o romeno Radu Jude lançou em 2023, é um turbilhão filmado como road movie: rodado em 16 mm preto-e-branco, pode ser entendido (entendimento fugaz, bem entendido…) como uma metáfora do tempo febril de uma cidade moderna na periferia do capitalismo – no caso, Bucareste, capital da Romênia, país periférico na rica Europa (mas membro da União Europeia, o que garante subsídios polpudos). Ângela Raducani (Ilinca Manolache, impagável) é uma assistente de produção que corre em todas as direções, bate o corner e cabeceia, envolvida na feitura de um doc institucional para empresa austríaca – e nas horas vagas, ou melhor, nos minutos vagos, posta vídeos misóginos/machistas no TikTok, usando filtros torpes para assemelhar-se ao infame Andrew Tate.
Certo, a vida nas cidades contemporâneas é feita de interrupções (des)contínuas, isto é óbvio – mas, como indica Radu, um filme como esse não poderia ter sido feito em Berlim, Londres ou Paris. Há uma consciência geopolítica nas imagens, granuladas até o osso. Mas há também momentos de placidez colorida: interpoladas no curso das ações, cenas de “Angela goes on”, pérola esmaecida do realismo socialista tardio romeno, rodado em 1981 sob a direção de Lucian Bratu – uma taxista, também chamada de Ângela, trafega pelas ruas amenas do cartão postal socialista que o ditador Nicolae Ceausescu sonhou para o seu país. A decisão de intercalar as imagens foi tomada graças a uma interrupção casual na edição, como disse Radu.
Tudo começa com Ângela acordando às 5 e meia da manhã, para encarar 16 ou 18 horas de trabalho – em boa parte dirigindo, câmera fixa captando sua imagem de perfil. Trânsito pode ser um espaço de negociação para rancorosos e neuróticos, sabemos disso, e Ângela não regateia. Entrementes, recebe ligação do chefe insistindo que ela, em vez de dormir, precisa de uma atitude mais positiva para aguentar o rojão. Sua pauta é gravar falas de potenciais candidatos a depoimentos no documentário em produção, sobre deficientes físicos em virtude de acidentes de trabalho.
Mas imprevistos podem ocorrer: no meio do dia, transporta sua mãe ao cemitério que contém os restos mortais dos seus avós, onde – devido a erro administrativo – um conjunto habitacional começa a ser construído. Os corpos, portanto, precisam de ser exumados e enterrados novamente – como tudo parece ser filmado com um olhar observador casual, não há choros ou desespero. Ângela, e por extensão nós, os espectadores, somos supostos em aceitar reviravoltas estranhas como essa com uma atitude distante, reservada, mas emblemática de um certo denodo espiritual. Teologicamente falando, estamos bem, conclui o funcionário da construtora.
“Não Espere Muito do Fim do Mundo” é também uma colagem ininterrupta de citações literárias, piadas, referências para cinéfilos – afinal, estamos em um experimento onde a narrativa é um incidente a mais. Vamos fazer isso o mais rápido possível, proclamou Radu à equipe no primeiro dia de filmagens: e foi muito rápido, 22 dias, 8 ou 9 horas por dia. Tal rapidez impacta, é claro, na linguagem, e também tem a ver com o desejo do cineasta de manter o pique de produção, como fazia Fassbinder. Com resultados bons ou maus como o alemão, segundo ele, não importa: o ideal, no estágio atual da tecnologia, seria fazer um filme por semana. Importa, sim, pensar sobre a produção das imagens, como fazia Godard, constante referência de Radu Jade – um dos personagens menciona en passant a recente morte assistida de Jean-Luc Godard.
Sem perder de vista, naturalmente, o entorno do real contemporâneo da Romênia – o capitalismo neoliberal que se instalou após a queda do socialismo autoritário de Ceausescu, conectando duas degradações, dois extremos. Mas não há vilões explícitos nesse mundo, há os céticos, os desprovidos de humor, os traiçoeiros, mas Ângela contorna e segue em frente. Chega a noite e nossa personagem-guia é encarregada de pegar a representante austríaca no aeroporto – Doris Goethe (Nina Hoss, a grande atriz alemã), descendente de ninguém outro que o ícone dos espíritos germanófilos, Johann Wolfgang von Goethe. Doris vai a Bucareste para fechar a produção do documentário.
A última parte de “Não Espere Muito do Fim do Mundo”, em contraste com a sofreguidão do restante, é um plano fixo a cores das repetições do deficiente selecionado, Ovidiu. Repetições que são encenadas, de acordo com os ditames do produtor, assim como fizeram os irmãos Lumière, quando rodaram várias vezes a famosa saída da fábrica, em 1895 – apenas a primeira tomada foi espontânea, as demais, dirigidas.
Um dos próximos projetos de Radu Jade intitula-se “Dracula Park”. Meu pai nasceu na Transilvânia, justificou, precisamos de um olhar local sobre o personagem.