Memória
Matéria e antimatéria
Por João Lanari Bo
Festival de Cannes 2021
Dono de uma sólida carreira e um status de cult no circuito independente global – não é pouca coisa – o cineasta tailandês Apichatpong “Joe” Weerasethakul é uma “pule de 10”, como se diz no turfe, quando se trata do Festival de Cannes: seu mais recente longa-metragem, “Memória”, produzido na Colômbia, ganhou o prêmio do Júri na edição de 2021 do evento. É a primeira vez que “Joe” roda um filme fora do seu país natal, longe dos fantasmas que rondam suas histórias, longe da singular especificidade narrativa que construiu com seus filmes. Desta feita, é a Colômbia, país complexo geográfica e historicamente, vulcões, terremotos, guerrilha, narcotráfico, indígenas – não faltam frestas de contato com outros mundos, ou seja, fantasmas a granel. Em Cannes, o diretor ganhou com “Tio Boonmee” a Palma de Ouro, em 2010; “Eternamente Sua” ganhou o prêmio da mostra Un Certain Regard em 2002; e “Mal dos Trópicos” levou o Prêmio do Júri em 2004. Antes de “Memória“, “Cemitério do Esplendor” estreou em Cannes, em 2015 – confirmando seu status no espaço transnacional dos festivais de cinema, onde a reputação dos diretores de cinema de arte é estabelecida e a distribuição global praticamente assegurada, no circuito independente. Apichatpong se beneficiou por ser egresso de uma cinematografia não-ocidental, “exótica” – e ter logrado uma posição de autonomia autoral, ajudando a consolidar uma cultura cinematográfica “pós-nacional”.
Desta feita, “Joe” entabulou parceira com a atriz escocesa Tilda Swinton, principal papel (Jessica) e narradora dentro do filme – inclusive das alucinações que permeiam os acontecimentos – além de ter sido a produtora executiva. Dupla função desafiadora: por um lado, costurar e supervisionar a estrutura multinacional que viabilizou a produção; por outro, sintonizar na construção do personagem as percepções fantasmáticas que organizam e desorganizam o real. Logo no início Jessica, estrangeira residente em Medellín, vai a Bogotá visitar a irmã hospitalizada e, de repente, surge dentro de sua cabeça um ruído que aumenta de volume até chegar ao som estarrecedor de uma explosão. Ela é portadora da “síndrome da cabeça explosiva”, relacionada à paralisia do sono – ambas condições assustadoras, que faz a vítima acreditar que está acordada, mas sem conseguir se mexer. Há quem diga que as duas condições poderiam explicar vários fatos tidos como sobrenaturais. Uma das razões que levou Apichatpong a escolher o tema é que ele próprio sofria com a síndrome: quando começou a filmar, entretanto, o som na minha cabeça desapareceu e passei a dormir profundamente, disse. Na Colômbia, país que conheceu em 2017, não faltam histórias fantásticas e relatos inverossímeis: a essa camada básica, “Memória” agrega os longos e meditativos planos característicos do diretor, que saturam a imagem e levam a imersão do espectador a um nível extra-diegético, quase sobrenatural, exatamente como reage Jessica diante das incongruências que experimenta, das pessoas com quem interage e desaparecem. Como é o caso do engenheiro de som Hernán – que configurou um arquivo de áudio para ajudá-la a entender a explosão que ouviu, descrita por ela como:
uma bola de concreto batendo em uma parede de metal cercada por água do mar; como um estrondo vindo do centro da terra.
Um momento iluminista do filme é quando Jessica encontra-se com Agnes (Jeanne Balibar), arqueóloga que estuda restos humanos antigos desenterrados durante a construção de um túnel. O crânio de uma menina tem um buraco, um pequeno buraco, que Agnes sugere tenha sido perfurado pelos xamãs para libertar os maus espíritos – talvez o que Jessica esteja procurando, libertar o ruído que desencadeou sua insônia. Ela sai da cidade em busca da libertação – e no trajeto na estrada depara-se com um signo da realidade colombiana, uma blitz militar de controle de guerrilheiros e traficantes. A imagem é discreta: não há, em “Memória”, nenhuma tomada de violência gratuita, tão ao gosto dos produtores hollywoodianos em se tratando de locações latino-americanas, em particular a Colômbia (basta lembrar “Sr. e Sra. Smith”). Mas a tensão está lá, quase imperceptível, contrastando com os planos do museu e das salas de música, na Biblioteca Luis Ángel Arango de Bogotá, onde paira uma atmosfera cultural de primeiro mundo.
“Memória”, afinal, é mesmo uma produção “pós-nacional” – até o cineasta chinês Jia Zhangke está nos créditos, como produtor. Jessica acaba chegando ao município de Pijao, onde conhece um homem mais velho, também chamado Hernán. Ele explica que nunca viajou nem assistiu a filmes, TV ou noticiários, porque já tem histórias suficientes e se lembra de tudo. Quando começa a falar sobre um incidente de infância envolvendo sua mãe, Hernán diz que ela está lendo suas memórias, como uma antena.