Meio Irmão
Plástico Paulistano
Por Jorge Cruz
Em setembro de 2018, “Meio Irmão” ganhou o Prêmio Petrobrás de Cinema de melhor filme de ficção na 42ª Mostra de Cinema de São Paulo. Com isso, a parceira do festival oferecia 200 mil reais para garantir um estreia digna no circuito nacional, em pelo menos cinco cidades e quinze salas. Somente um ano e meio depois estamos presenciando a chegada do primeiro longa-metragem da experiente diretora Eliane Coster às salas. Para citar um meme já cansado, this represents Brazil more than soccer and samba. Isso cria um efeito acidental interessante na relação com a obra, uma ideia de influência do que seria um aparente movimento do cinema nacional que não faz qualquer sentido, visto que a produção do filme ocorreu há três anos e não poderia acontecer algo assim.
Há em “Meio Irmão” uma construção imagética permeada por uma temática muito parecida com as produções da Filmes de Plástico, sopro de esperança de um audiovisual brasileiro passível de comungar com o grande público parte dos objetos urgentes que fazem os realizadores da nossa nação insistirem em acreditar na cultura. Tirando os momentos iniciais do longa-metragem, onde a cineasta insiste em abordar a protagonista Sandra (Natália Molina) por enquadramentos altos, a distribuição dos planos se pautam pela linearidade. O único exibicionismo do filme é da amiga da personagem, inserida (e pouco aproveitada) na trama como uma adolescente supostamente desapegada, enviando nudes ao mesmo tempo em que tenta se inserir em um mundo sexualmente ativo.
Nessa primeira fase do filme a abordagem se aproxima das questões do feminino. Sandra precisa conviver com o desaparecimento da mãe, além de provedora do lar a única referência. Por isso é cada vez mais desesperador uma realidade onde a gravidez precoce é discutida apenas entre as colegas de classe. O território onde se concentram as ações de “Meio Irmão“, o bairro de Vila Ré na zona leste de São Paulo, se assemelha a boa parte da filmografia brasileira atual que nos coloca diante do espelho como sociedade: um ambiente pautado pela falta de perspectiva, descaso do Poder Público e que sofre com a ausência de diálogo entre as pessoas, cada vez mais imersas em seus próprios problemas.
O filme faz essa construção com um minimalismo sonoro inebriante, em que os elementos da periferia urbana surgem como personagens menos importantes, posto que corriqueiros. O trem que passa, a foto do próprio órgão sexual e uma pipoca no microondas possuem o mesmo peso, são vistos com plenas naturalidades e desinteresses. O rap chega apenas na parte final e, como sempre, com viés empoderador – provedor de autonomia de pensamento. Sandra, cada vez mais incomodada com a ausência de referencial, procura seu pai – e impressiona como ela evita o contato físico, telefonando para o mesmo da porta da loja onde ele trabalha. Dias depois, quando eles cruzam finalmente os caminhos, a maneira como a palavra “pai” é pronunciada por Natália Molina carrega o peso de uma indiferença debochada – e tudo já está dito. Ela encontrará em Jorge (Diego Avelino) a representação mínima de um conceito de família que uma jovem ainda precisa ter. Do lado dele, a orientação sexual reprimida e o risco de ser exposto em uma comunidade que exala preconceito faz com que as conexões entre eles permaneçam fragilizadas.
“Meio Irmão” não consegue ser tão eficiente como um mosaico como obras como “No Coração do Mundo“. Todas as propostas dos primeiros minutos acerca do feminino já mencionadas são pulverizadas. Não há mal nisso, decerto há uma escolha de foco pelos dois protagonistas. Todavia, isso não permite o desenvolvimento das relações entre eles e personagens secundários. Quando Sandra está morando na nova casa, há um interessante choque geracional. O pai de Jorge quer abrir uma loja e dá um tostão de machismo estrutural ao dizer que a jovem, caso o estabelecimento cresça, pode ocupar vaga de atendente ou recepcionista. Mesmo assim, desconexos, esses fragmentos de sociedade contribuem para uma excepcional recepção da obra, como acontece no almoço entre pai e filho em que eles discutem sobre o quão perturbador é deixar a televisão ligada nos jornais que escorrem sangue de tanta violência.
O cinema nacional cada vez mais explora o processo de amadurecimento – em sentido amplo, de narrativas, técnicas e linguagens – e não é à toa que o espectador acabe criando esses diálogos invisíveis entre longas-metragens. Resta o lamento da dificuldade que esses encontros sejam mais constantes e dinâmicos, posto que os festivais e mostras cada vez mais enfrentam problemas para se manter – e a distribuição dos longas-metragem em circuito é pior ainda. Essa visão paulistana de sociedade, um olhar calejado de sofrimento periférico, não permite a esse filme um ato final tão otimista e, até certo ponto, catártico. Mesmo assim, o simbolismo da união contra o preconceito e a ausência de oportunidades entre os meio-irmãos é belíssima. Fica ressoando na mente a sensação de que a Juliana de Grace Passô em “Temporada” parece querer dizer à Sandra de Natália Molina de “Meio Irmão“: “aguenta firme, foram muitos anos assim, o importante é manter a busca por autonomia e liberdade”.