Mato Seco em Chamas
Quebradas contra a invisibilidade
Por Fabricio Duque
Durante o Festival Indie Lisboa 2022
Cada vez nós percebemos mais um aumento no foco do cinema brasileiro em problematizar questões sociais. Essa característica sempre esteve presente, como se fosse uma tradição, um sentimento genuíno, uma tatuagem, que se personificou pela voz e forma do Cinema Novo de Glauber Rocha. Havia uma ideologia-catarse de utopia gritada para se rebelar contra a apatia das ações comportamentais do povo em relação ao sistema-dinâmica de governo-mundo. E assim, o cinema brasileiro consolidou essa estética nos festivais. Era notório e indiscutível o propósito de salvação. De uma ingenuidade em acreditar que o simples fato de denunciar pelo visual já conseguiria estimular o fim do transe na população-componente, inferindo inclusive a fábula literária “Ensaio sobre a Lucidez”, do escritor José Saramago. Pois é, ainda que Portugal e Brasil tenham vínculos de colonizador/colonizado, as diferenças são imensas, o que geraria um tratado antropológico (mas pouparemos os leitores de tamanha obviedade subjetiva). E também pensar palavras e construir fantasias é diferente de agir.
Todo esse preâmbulo talvez possa ambientar o real querer das obras brasileiras: utilizar o cinema como uma ferramenta de ajuda aos órgãos internacionais, especialmente os festivais. E assim, por lógica, para um produto ser vendido é preciso que o mesmo tenha suas características mais explicadas, mastigadas e didáticas. No nosso caso, por exemplo, a história é abordada pela sensibilidade e pela condução narrativa mais orgânica, a fim de provocar no espectador a sensação de intimidade imersiva. “Mato Seco Em Chamas”, do cineasta brasileiro da Ceilândia Adirley Queiróz (de “Branco Sai, Preto Fica”) e da cineasta portuguesa Joana Pimenta, não só é um desses filmes, como ainda traz a estética do Novíssimo Cinema Brasileiro, um jeito globalizado de estilizar a imagem com uma maior liberdade de existência. Essa forma também quer normalizar e entender a necessidade dos “fins justificam os meios”, espaço em que a opção pelo crime não é julgada pelo viés conservador maniqueísta e sim pela reparação-revolução das classes menos favorecidas e “esquecidas na invisibilidade” pelo próprio Brasil, imprimindo também moldes do cinema de Affonso Uchoa, de “A Vizinhança do Tigre”, “Arábia” e “Sete Anos em Maio”.
“Mato Seco Em Chamas” integrou a seleção oficial competitiva do Festival Indie Lisboa 2022 nas categorias principais, a Nacional e a Internacional, já que um era brasileiro e a outra portuguesa. E venceu nas duas, talvez pela simplificação do conceito. De vida observada. De contemplar micro-ações. De estender o momento entre a euforia do que é dito e a assimilação silenciosa da recepção, pela permissão do olhar em expor gratuitamente as fragilidades a ponto de constranger as próprias personagens. Isso faz com que os atores precisem interpretar suas vidas-existências presentes para se distanciar da realidade. Aqui, o filme apresenta-se como uma seleção de esquetes coloquiais, a esperar os próximos comandos dos diretores. “Mato Seco Em Chamas” também nos conduz por um estético balé, personificando maquinários e relacionamentos, para abordar outra questão: a do feminismo essência. Na trama, mulheres convivem sozinhas, autossuficientes, totalmente independentes e longe da co-dependência dos homens. Neste cenário, os “machos” servem e aceitam ordens, de chefonas do crime. Essas “mulheres-maravilha” femme fatale metaforizam a ideia das Amazonas, de garotas perdidas, que não querem só se divertir com outras mulheres, mas dominar toda a “quebrada”.
Só que Adirley e Joana desejam mais. Muito mais. Eles embarcam na crença absoluta de construir um absolutista e intimista tratado-conto, especialmente quando insere manifestações pró-Bolsonaro em Brasília. Ou então sobre a campanha política de uma delas candidata. Pois é, por mais que um filme tenha esse poder de protestar e ser instrumento de conscientização social, de mostrar opções “saudáveis” de vida, mesmo assim o excesso de tópicos sempre pode se tornar demais. Em uma de suas falas na apresentação do filme aqui em Lisboa, Adirley disse que fazia um filme para seu lugar natal na Ceilândia e que não esperava aceitação do público. “Mato Seco Em Chamas”, em hipótese alguma, é um filme ruim, pelo contrário. O tempo narrativo e o tempo da câmera provam que este é uma obra sobre uma ficção-científica em distopia, com acirrada crítica à política do petróleo. Um que de faroeste de periferia à la “Mad Max”, que de maneira inevitável encontra “Bacurau”, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. De desconstruir o presente atual com a promessa de um futuro observado pelo passado. É, talvez a quantidade de análises poéticas encontre mais a atmosfera portuguesa que brasileira, muito também porque Joana fornece um estrangeirismo perceptivo, que, conjugado com o naturalidade do jeitinho brasileiro, alcança a secura do fogo.
“Mato Seco Em Chamas” é um filme de implosão. Do micro que está em conflito com o macro. Suas personagens explicitam a margem da sociedade. De um lugar que não os quer. De exclusão. De se proteger no contra para manter a sensação de presença real, para impedir o humano de ser invisível. Sim, este longa-metragem é um passaporte contra o desaparecimento. O filme, que estreou internacionalmente no Festival de Berlim 2022, também venceu o grande prêmio da competição internacional do Festival de Cinema du Réel, na França, em março de 2022.