Curta Paranagua 2024

Matar a un muerto

Carrascos prisioneiros

Por Victor Faverin

Durante o Festival de Cinema de Gramado 2020

Matar a un muerto

A ditadura paraguaia durou 35 anos e foi uma das mais sangrentas da história conflituosa de lutas armadas da América Latina no século 20. A repressão sentida pela sociedade em regimes autoritários já foi retratada muitas vezes pelo cinema – ainda que nunca seja demais lembrar as consequências nefastas de golpes militares e filmes com essa temática sejam sempre bem-vindos. Mas o que tal período significou para os peões que, robóticos, apenas cumpriam ordens, ainda que tivessem, claramente, uma escolha? O quinto longa-metragem estrangeiro a compor a Mostra Competitiva do 48º Festival de Cinema de Gramado, o paraguaio “Matar a un muerto” (2019), dirigido por Hugo Giménez, explora essa vertente na figura de dois homens que, em 1978, passam os dias a enterrar em um bosque os corpos brutalmente assassinados pelo regime.

Trata-se de uma história de desenvolvimento vagaroso e que prima pelas nuances – muitas vezes autoritárias e violentas – da relação entre os dois personagens principais, um supervisor (Silvio Rodas) e um ajudante (Aníbal Ortiz). A trama foca no senso de dever sentido por cada um deles e os tornam tão enraizados no acampamento em que vivem que é possível ver humanidade em cada ato, em cada olhar, principalmente em quem está sendo subjugado. Para compor o cenário de repressão, o roteiro traz a presença invisível de um predador à espreita e, ainda que esse não seja o foco da história, o faz com mais propriedade que no drama argentino “O silêncio do caçador” (2019) através da ambientação composta por Giménez. Os sons da floresta enfatizam o ambiente insalubre em que a história decorre e os diálogos são cirúrgicos. Cada um fala apenas o necessário.

Através dessa vocalização em conta gotas, “Matar a un muerto” toca, mesmo superficialmente, em um dos artifícios largamente utilizados por ditaduras e movimentos fascistas: tratar pessoas apenas como números. Ao não nomeá-las, os algozes sentem-se eximidos de culpa, como se estivessem apenas executando um trabalho burocrático em um depósito, organizando o estoque. Entretanto, em uma das cenas que fita o seio desnudo de uma das vítimas, além de desejo, o ajudante parece perceber que está a enterrar pessoas, mortas de uma forma cujas circunstâncias cruéis ele imagina, mas que não quer fazer parte. O supervisor, ainda que mais severo e experimentado em serviços que ninguém quer fazer, também não é um assassino.

Prova disso se dá nas vezes em que ele tem a oportunidade de utilizar a espingarda quando é confrontado pelo auxiliar e, mais diretamente, quando se depara com o corpo que não é apenas mais um corpo, mas um homem que, milagrosamente, sobreviveu à tortura e à execução. Os personagens, agora um trio, precisam conviver. O diretor nos faz crer, inicialmente, que o prisioneiro será apenas um morto vivo cuja humanidade será tirada aos poucos por pessoas que se vêm diante de um obstáculo, mas o desenrolar da história sucede de outra maneira. Parte disso se deve ao desejo quase infantil do auxiliar de ter notícias sobre a Copa do Mundo de futebol. O rádio que possui não capta frequência e o comunicador com o comando central, que lhes avisa sobre a chegada de novos corpos, também não funciona adequadamente.

Aliás, é na comunicação com os despachantes de corpos que Giménez deixa claro que o supervisor e o auxiliar, tanto como o “morto” do título, são também prisioneiros, forçados a trabalhar para, quem sabe, um dia sair dali com vida e algum dinheiro. “Matar a un muerto” teria, entretanto, se beneficiado ainda mais se desenvolvesse – ou ao menos explicasse – a natureza de um talismã que aparece na história. Seria interessante observar a incredulidade ou cobiça daqueles homens em relação à peça como eventual e único canal deles com uma força maior. Ao mostrar de forma taxativa que há humanidade no comportamento de pessoas que fazem parte de uma ditadura que mata opositores diariamente e em dúzias, o longa não deixa de gerar o incômodo de que está sendo permissivo, encarando a ditadura comandada por Alfredo Stroessner como um mal necessário. Mas não é essa a mensagem.

“Matar a un muerto” se aproxima de filmes com subgênero de guerra ao expor que os soldados que empunham armas nem sempre têm conhecimento do que estão combatendo e, menos ainda, do porquê. São meros joguetes, o braço violento de um organismo pensante que determina o que, quando, onde e como pensar, assim como e de que maneira exterminar.

3 Nota do Crítico 5 1

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