Loucos Por Cinema!
Nosso enigma
Por Letícia Negreiros
Festival de Cannes 2024
Agnés Varda se considerava uma catadora de informações. O primeiro relato de “Os Catadores e Eu” diz que “catar era o espírito de antigamente”. Antes era uma atividade apenas feminina, uma exclusividade que se perdeu no tempo. “Minha mãe dizia-me: apanhe tudo, para não haver desperdícios” continua a fala. “Loucos por Cinema!” (Spectateurs! no original) faz seu máximo para seguir o conselho. Entre o documentário e a ficção, o longa-metragem se estende por significados e debates, refletindo e demonstrando várias facetas do cinema.
Arnaud Desplechin inicia sua narrativa de um ponto simples: tempo e movimento. A captura de movimentos nas artes visuais. Então, o tempo fotografado. Então, o cinema, a reprodução de tempo e movimento. Desplechin nos instiga: o que acontece com a realidade quando ela é projetada? Não é uma pergunta de simples resposta. Há o parecer acadêmico, mencionado e usado como base para parte da trajetória que nos é contada, mas não são determinantes. A ideia de uma arte maior ou menor no cinema não soa certa para Desplechin. Não há bonito ou feio. O cinema é, antes de tudo, sentimento e experiência.
Para ele, é algo fortemente ligado a uma paixão, um chamado. “Loucos por Cinema!” traz uma perspectiva do que é viver o cinema em duas instâncias: o fazer e o consumir. A diferença entre elas é nítida, mas a separação é sutil e, no que o diretor nos apresenta, por vezes inexistente. Emprestando suas memórias a Paul (Louis Birman, Milo Machado-Graner, Sam Chemoul, Salif Cisee), seu alter ego, busca validar a necessidade de viver produzindo. O consumir é mais antigo em sua vida e ajuda a perceber um vínculo mais profundo com o fazer cinematográfico. A lembrança de sua primeira vez no cinema é marcante, mas o convívio com filmes vem de antes. Estar no meio produtivo é primordial para que se perceba como indivíduo.
Aspectos de linguagem escolhidos por Desplechin até pincelam essas nuances, mas não chegam a separá-las. A mistura de documentário e ficção acaba por enriquecer o diálogo estabelecido entre essas alçadas. Momentos roteirizados que mostram a trajetória de vida de Paul exploram o fazer. O personagem tem a vontade pulsante de estar no cinema, fazendo-o e vivendo-o. Por mais que de fato viva disso, Desplechin parece encarar como um sonho. A escolha da fotografia – encabeçada por Noé Bach – em representar esses momentos com uma luz levemente enevoada traz um ar onírico e garante, com certeza, que essa é a parte ficcional do longa. As entrevistas que entrecortam a história trazem outros pontos de vista, de pessoas variadas com experiências distintas. Com elas “Loucos por Cinema!” mostra um cinema multifacetado, reforçando a ideia de que, antes de tudo, está o sentimento e o indivíduo. A forma como o filme fala com cada espectador é única.
Mas o que acontece com a realidade quando ela é projetada? Desplechin trata essa como uma pergunta de muitas respostas. Perspectivas individuais, assim como o cinema. Traz menções acadêmicas, cita Bazin, Panofsky, Cavell… É possível achar uma resposta nas entrevistas que traz ao longo do filme. Para o próprio, a realidade cintila em significações. A projeção dá significado ao mundo.
Por mais que pareça demasiado filosófico, “Loucos por Cinema!” é bem didático em defender seu ponto. A narração, ao abordar assuntos que podem parecer complexos em um primeiro instante, é ponderada e eloquente. As conexões são maravilhosamente projetadas e se desenrolam sem esforço diante do espectador, quase como se estivéssemos pensando sozinhos e o raciocínio fosse nosso o tempo todo. Além da alternância entre ficção e documentário, a montagem – assinada por Laurence Briaud – traz trechos de outros filmes e outras obras, ilustrando o que Desplechin exemplifica e defende ao fazer um grande apanhado sobre o que é o cinema.
Ao final, temos apenas a resposta do diretor. Não é universal e muito menos definitiva. Pessoalmente, acho que “Loucos por Cinema!”, parte da mostra Sessões Especiais do Festival de Cannes 2024, vai por um caminho interessante, não apenas em sua definição, mas no complemento que dá a ela. O que acontece com a realidade quando ela é projetada é o nosso enigma. Talvez pela individualidade de cada perspectiva, talvez pela troca de experiências que possibilita. Segundo Desplechin, o filme pretende “celebrar os cinemas e sua magia múltipla”.