Mostra Um Curta Por Dia A Repescagem 2025 Junho

Levados Pelas Marés

Um filme que busca reencontrar a humanidade perdida

Por Fabricio Duque

Assistido presencialmente no Festival de Cannes 2024

Levados Pelas Marés

Jia Zhangke é um cineasta chinês, tradicionalmente simples, um interiorano “homem de Fenyang” e que resolveu existir enquanto direciona suas lembranças subjetivas a sua câmera, que capta em movimento uma evocação do tempo passado. Isso pode explicar muito sobre a forma como constrói suas obras. Jia faz um cinema de memórias, de um cotidiano em poesia coloquial, que acontece despretensiosamente. São instantes representados de sua própria vida, ora ficcionais, ora projetados. É como se as imagens filmadas fossem documentos de uma nostalgia orgânica em sensações revisitadas. Pode parecer simples traduzir seus trabalhos, mas não é. A complexidade está presente e habitável nesse minimalismo sentimental dessas memórias afetivas acessadas, orgânicas, pessoais e por um olhar particular de quem as filma. E que no momento dessa ação-escolha-decisão quer apenas o registro do instante, para assim eternizar e pensar depois o que fazer e/ou que filme pode sair. 

Assistir a uma obra de Jia Zhang-ke é embarcar em vidas que acontecem nas esperas, nos movimentos rotineiros, nas obrigações motoras do dia-a-dia. Só que esse cotidiano sempre encontra seu tempo, seu descanso e Jia sempre está ali. No lugar certo e na hora precisa, porque acredita que os acasos são as sortes da vida. Há em seu cinema um tempo estendido, de improvisos gestuais, de intervenções possíveis, de uma liberdade amadora, sensorial, caseira, poética e de impulso imprudente, quase irracional para ser fiel a própria alma da vida. Esse etéreo é real, enquanto essa ficção tem cara de documentário simulado. Assim, cada frame captado torna-se história para sua existência, que compartilha nas telas, de propósito unicamente individual.

Seu mais recente filme, exibido aqui na mostra competitiva a Palma de Ouro do Festival de Cannes 2024, “Levados Pelas Marés”, corrobora sua liberdade da criação, quase como um monge que abriu mão do desprendimento da dialética da existência humana e assim quase com olhos de câmera mosca consegue circular e mesclar mundos e universos até então incompatíveis, como a imagem analógica e o rock pesado, entre contemplação, imagens antigas em fitas e uma roda de mulheres cantando músicas típicas. Uma dessas personagens até olha para a câmera. Cinema verdade ou de invenção, não importa mais. O que poderia soar estranho, aqui vira uma naturalista composição saturada mais que equilibrada. Jia quer é ser “Levados Pelas Marés”, também quer nos conduzir por essa sinestesia da libertação, que simula o antigo com o realismo reconstituído do presente. É um filme de situações, de momentos e de ações movidas pelo querer subjetivado. Jia filma o que conhece e isso dá uma maior credibilidade às imagens registradas. O bar, os mineiros, os passantes, as “bizarrices”, a “parada de ônibus”, a comida. Sim, como disse é um filme de fragmentos. Jia é o cineasta do cotidiano, que transforma instantes de “gosto da vida” em memórias de comportamentos dos chineses do Norte, em estética simulada de material antigo, intercalada com cenas de alguns de seus filmes anteriores e até mesmo com um que estético de Tik Tok. 

“Levados Pelas Marés” é um mix de narrativas, de estéticas, ora soltas, ora complementadas, ora com a pandemia do agora, ora com reações exageradas versus o silêncio. Jia experimenta linguagens “intrigantes” e “corajosas”, entre fusões de imagens, resumo versão do diretor. O longa-metragem quer nos mostrar que tudo mudou bastante. Que agora as relações humanas estão diferentes, mais “funcionais”, mais “práticas”, mais tecnológicas com seus robôs programados para que ninguém “perca tempo” com frívolos protocolos sociais. No mundo do hoje, o futuro é o não reencontro. Para uma personagem, não há mais identificação com o mundo antigo, que agora se torna impessoal, frio e mitigado dos comportamentos humanos. Os silêncios são quase obrigatórios para não “atrapalhar”os outros. E assim ela escolhe correr. Escolhe viver, mesmo não encontrando mais lugar e pertencimento. 

É, pois é, quantos de nós já não nos questionamos sobre o mundo do passado ao ser apresentado às novidades IA dos tempos atuais. Quantos já perceberam que todos só olham para seus celulares em metrôs ou apenas esperando em alguma fila. Ou até mesmo andando e digitando para se sentirem vivos, ativos e lembrados nas redes sociais. “Levados Pelas Marés” pode ser visto como uma tentativa de reencontrar propósito neste momento reacordando e revisitando memórias afetivas. Será que o segredo para manter a motivação está no simples lembrar? Está na liberdade de se desprender dos complexos pensamentos intrusivos? 

No artigo Jia Zhang-ke e suas plataformas em 24 quadros por segundo que escrevi inicialmente para a revista Rosebud, e que agora pode ser lido no Vertentes do Cinema, pontuei que nas obras de Jia, o presente está em processo de desapropriação do passado por uma remodelagem naturalista-coloquial do contemporâneo, como se fossem crônicas-ensaios em uma utópica férias da realidade que inevitavelmente se tornará resignação e sobrevivência. No artigo chinês “Poética da Desaparição”, de Zhang Xudong, traduzido por Hugo Mader, as “transformações sociais e econômicas” nos filmes de Jia são “do ponto de vista das ruas e à margem dos grandes centros”, explorando “desaparecimento, demolição e deslocamento”. 

4 Nota do Crítico 5 1

Conteúdo Adicional

Apoie o Vertentes do Cinema

Deixe uma resposta