Mostra Um Curta Por Dia - Repescagem 2025 - Julho

Iracema – Uma Transa Amazônica

O Futuro é o passado

Por Vitor Velloso

Festival de Cannes 1976; Festival de Berlim 2025

Iracema – Uma Transa Amazônica

O grande clássico cult de Jorge Bodanzky e Orlando Senna, “Iracema – Uma Transa Amazônica”, agora de volta em 2025 aos cinemas e com distribuição da Gullane+, é mais um acerto das distribuidoras brasileiras, que têm apostado no relançamento de obras importantes da cinematografia nacional.

“Iracema – Uma Transa Amazônica” não é apenas um retrato das particularidades de um país subdesenvolvido e do desenvolvimento desse subdesenvolvimento — como acusava, em tom irônico, a Canção do Subdesenvolvido (1962), de Chico de Assis e Carlos Lyra, do CPC (Centro Popular de Cultura), que abre o gigantesco clássico “Cabra Marcado para Morrer” (1984), de Eduardo Coutinho —, mas é também uma obra que tensiona a ficção e o documentário na intenção de explicitar as diferentes formas de conceber um Brasil que se complexifica em suas relações sociais e econômicas. O filme provoca a discussão por meio do desejo, dos sonhos e das diferentes formas de opressão vividas por Iracema (Edna de Cássia), não só em seu convívio com Tião (o ator Paulo César Pereio), mas em todo o seu percurso.

O espectador mais desatento à estrutura semidocumental e aos dispositivos de tensão da própria forma cinematográfica pode vir a acusar o filme de esvaziamento moral ou de uma denúncia vã. Seja por descuido, seja por tentar constranger o discurso através de um prisma tão anacrônico quanto nocivo, deixa-se de perceber como o processo transforma todos os personagens em meros objetos, as situações em meros gatilhos e o cenário em um retrato sintético de um “progresso” mambembe, que liga pontos regionais e longínquos por interesse, criando a falsa sensação de um desenvolvimento nacional — seja este qual for. A rodovia se torna palco das histórias, de sonhos impossíveis, das relações agressivas e do ato de abdicar da dignidade para conseguir algo, independentemente das consequências e dos meios.

Dessa forma, quando “Iracema – Uma Transa Amazônica” se entrega à necessidade de particularizar essa representação na figura dos personagens centrais, toda essa miserabilidade moral aparece na própria encenação — direta, desajustada e consciente de sua falta de uma beleza estabelecida pelo cinema clássico, incluindo as bases referenciais estéticas vigentes na época.

É fascinante como “Iracema – Uma Transa Amazônica” pode ser julgado como uma obra do passado sob diversos aspectos que ainda estão presentes nos dias de hoje. Mas, sob seu aspecto político, social e econômico, não há necessidade de realizar nenhum tipo de atualização ou crítica à obra de Senna e Bodanzky — com a possibilidade de exceção apenas para a forma como podemos retratar as particularidades concretas de uma realidade tão pisoteada pelas facetas de um Brasil entregue ao imperialismo. Contudo, para realizar uma leitura mais ampla desse complexo cenário, a película teria de se distanciar da falibilidade explícita do projeto natimorto que dá ideia ao título do filme, com toda a ironia sexual. Dessa forma, o projeto é eficiente em estruturar sua base de representação sob um aspecto mais direto, sem a necessidade de discutir temáticas mais amplas de forma específica — ou seja, as argumentações em torno desse aspecto estão mais diretamente ligadas ao arcabouço do espectador do que à base propositiva da obra em si. O que, neste caso, acaba sendo um trunfo importante para o funcionamento do longa, já que a centralização da narrativa nesses dois personagens concretiza essa lupa consciente de suas próprias limitações.

Aliás, é nessa paisagem geográfica, política e histórica que “Iracema – Uma Transa Amazônica” soa como um retrato apocalíptico de todas as relações que se estabelecem — ou se encontram — na rodovia. Seja com a intimidade exposta em cemitério, com a negociação para transporte de carga ou com as idas e vindas de personagens sem um destino claro. Nessa dança fúnebre, cruel, desprovida de limpeza, que flerta com diversos elementos da pornochanchada, o filme se estabelece como um ciclo — não necessariamente entre o desespero e a esperança, como parte do projeto cinemanovista, mas como uma eutanásia social e moral, de seres e histórias que cruzam o longo traçado sintético da realidade nacional e de seu projeto falido.

De alguma forma, “Iracema – Uma Transa Amazônica” é perfeito para caracterizar o trânsito entre o cinema marginal e a pornochanchada, onde — não ironicamente — o trânsito é o movimento (anti)natural do longa, fincando na cultura cinematográfica nacional um dos emblemas dessa passagem de bastão.

5 Nota do Crítico 5 1

Conteúdo Adicional

Apoie o Vertentes do Cinema

Deixe uma resposta