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Intervenção Divina

Resistência pelo silêncio

Por Pedro Sales

Festival de Cannes 2002

Intervenção Divina

O conflito entre Israel e Palestina, que culminou na morte de mais de 30 mil palestinos pelo exército israelense conforme a Al Jazeera, não é de hoje. A antiga disputa territorial e as diferenças culturais entre as duas nações são objeto do cinema de Elia Suleiman. O cineasta palestino examina, portanto, como se diferem os costumes e a rotina dos dois grupos. Seu primeiro longa, “Crônica de um Desaparecimento” (1996), demonstra por meio de vinhetas o cotidiano palestino em contraste ao absurdo israelense. Quando ambientada em Nazaré, há um caráter documental muito forte, materializado sobretudo por essa câmera estática, observadora da rotina. Por outro lado, quando se insere em Jerusalém, a obra descamba para um filme com traços de policial e suspense. Ou seja, trata-se de uma obra pontuada por tais diferenças, em que os personagens apresentam arcos narrativos independentes não tão desenvolvidos, simbolizando um dos lados desse conflito.

Em “Intervenção Divina”, vencedor do prêmio do Júri no Festival de Cannes de 2002, Elia Suleiman parece criar uma continuação formal de sua estreia no cinema. Assim como no antecessor, o cineasta pontua as diferenças palestinas e israelenses por meio das vinhetas com um humor absurdo e silencioso. Não são por acaso as várias comparações com Jacques Tati. Assim como o francês, o próprio diretor também atua sem dizer nada, com uma expressão séria ainda que calcada neste humor puramente físico e visual. Enquanto Tati estabelece um dualismo entre a modernidade e o tradicionalismo com seu personagem-símbolo Monsieur Hulot, extremamente delineado em “Meu Tio” (1958), Elia também pontua o dualismo antagônico sob uma perspectiva cultural e política. Os valores cotidianos palestinos são colocados frente ao belicismo israelense, o que torna a obra, diante da conjuntura no Oriente Médio, bastante atual.

O absurdo, então, permeia a rodagem. A cena inicial com o Papai Noel esfaqueado correndo entre árvores antecipa o tipo de humor provocado pelo cineasta. É algo que não parece fazer sentido, para o corte em seguida mostrar um motorista cumprimentando e insultando os vizinhos de Ramallah. A primeira meia hora de “Intervenção Divina” constrói a noção de cotidiano por meio de vinhetas e ações corriqueiras. Cada uma delas, uma gag visual que basta em si mesma, cujo humor está inteiramente na cena, nos gestos, dependendo pouco do texto para causar humor. Conforme a montagem as une, traz essa sensação rotineira, são apenas acontecimentos comuns nessa vizinhança: o homem irritado que fura bolas, os idosos que vigiam tudo com a sincronia no movimento da cabeça ou a leitura de jornal na cozinha de casa. Com planos fixos que remetem ao olhar documental, Suleiman exige mais do espectador e da paciência dele no estabelecimento pacato desse povo.

A virada narrativa na obra se dá quando há uma virada cultural e geográfica. Saindo de Ramallah, na Palestina, para Jerusalém, Israel, tudo muda. O que era extremamente ordinário, torna-se absurdo. A cena em que uma mulher desarma os soldados da fronteira com o simples olhar, acompanhada por uma trilha dançante, evidencia tal mudança. O cotidiano israelense, aos olhos de Suleiman, é absurdo. Um caroço de pêssego atirado pela janela torna-se uma bomba ao acertar um tanque de guerra, um carro para no meio da noite em uma rua, o passageiro bombardeia e atira em uma casa. O fio narrativo das vinhetas cotidiana  passa a se estabelecer no personagem interpretado por Elia, que visita o pai acamado e que divide com uma mulher a observação diária dos soldados da fronteira, mas ainda com o humor silencioso e visual de gags. Uma delas, quando um balão vermelho se torna ameaça para o Exército Israelense, remete diretamente ao curta “O Balão Vermelho” (1956), de Albert Lamorisse.

Dessa forma, “Intervenção Divina” demonstra a capacidade do cinema ser um comentário crítico e político puramente pelas imagens e pelo contraste entre realidades. Se em “Crônica de um Desaparecimento” o absurdo se revela em um tom de suspense e espionagem, aqui Suleiman o torna apoteótico em um duelo literal entre Palestina x Israel. Valendo-se de convenções do cinema de ação oriental – dos longas de Hong Kong aos indianos, pela coreografia extremamente sincronizada -, a mulher que simboliza o povo palestino desarma o belicismo israelense com símbolos culturais, a bandeira, o hijab e o mapa da Palestina. É um cinema de resistência que mesmo pelo silêncio consegue gritar a força de um povo que lida há muito com a ocupação de seu território e com a morte dos seus.

3 Nota do Crítico 5 1

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