Grande Sertão
Pensamento da gente
Por Vitor Velloso
Em uma tentativa de incorporar o barroco e o caráter das tensões sociais, políticas e econômicas do Brasil contemporâneo, Guel Arraes propõe uma releitura audaciosa do clássico de Guimarães Rosa, utilizando a base narrativa, a prosódia, mas ancorando-se em um futuro distópico. Essa frente ambiciosa não consegue se consolidar como uma compreensão crítica atemporal de uma problemática e paisagem particular brasileira, pelo contrário, assume o referencial político do poder paralelo à la “Tropa de Elite”, recontextualizando as discussões do clássico para uma realidade contemporânea.
“Grande Sertão” é uma obra que centraliza esse caráter barroco em uma performance aguda, de hipérboles e dramaticidade acentuada, mirando uma representação quase Glauberiana dos impactos concretos da realidade fílmica, investindo inclusive na ideia de um professor de história para procurar o entrelace desse palco brasileiro, como em “Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro”, mas se a formulação performática deste serve para caracterizar uma ritualística que situa o palco de suas representações como a síntese de um recorte social e religioso, o novo filme de Guel Arraes parece traduzir essa performance em uma certa saturação modernista. Nesse sentido, até é possível vislumbrar que parte dessa saturação seja um dos objetivos da obra, já que reconsidera a paisagem do sertão clássico para uma região fechada, com muros altos, espaços encerrados e um líder autoritário, com simbolismos da extrema direita e com traços agudos de sebastianismo. O problema é que sem saber como balancear a abordagem épica, referenciando a performance moderna e compreendendo novos problemas para seus personagens, já que os desloca para essa distopia, o filme parece não saber como encontrar a identidade de Guimarães, nem mesmo sua própria, transformando esse cenário em uma grande caricatura, onde Joca Ramiro (Rodrigo Lombardi) faz os gestos mais estereotipados que um “bandido” poderia fazer em uma novela, Hermógenes (Eduardo Sterblitch) torna-se um “Vaas” da franquia de videojogos “Far Cry” e a caracterização dos problemas sociais e históricos presentes na obra original se encontra diluída nessa estrutura que deixa de complexificar a realidade para procurar sínteses específicas em momentos específicos e dilemas isolados, quando não uma dualidade superficial e moralista.
E talvez “Grande Sertão” sofra com o fato de não ser exatamente uma adaptação da obra clássica, ainda que seja impossível negar qualquer coisa nesse sentido, mas uma reimaginação que toma empréstimo de parte de sua estrutura, personagens, dramas e, claro, a prosódia. Ainda assim, é inevitável enxergar como o barroco aqui é compreendido enquanto uma performance exagerada, quase inócua, que torna-se apelativa por não incorporar em si as próprias informações de seu universo. Não por acaso, o longa não parece seguir uma narrativa exatamente, mas sensações que são despejadas para o público, cenas que devem funcionar em si, dramas e diálogos que deveriam ter o poder de sustentar o peso das contradições de seus personagens. Por essa razão, algumas performances centrais são particularmente comprometedoras, as cenas de ação com Diadorim (Luisa Arraes) que apesar de bastante performáticas, possuem uma carga constrangedora (muito por conta da mixagem de som). O próprio Riobaldo (Caio Blat) torna-se um personagem que flutua entre determinados espaços, representações e lembranças, sem nunca se estabelecer por completo, especialmente em suas narrações.
É realmente notável a ousadia de Guel Arraes em procurar o deslocamento de tantos elementos e a reimaginação de uma série de questões próprias, não apenas da obra, mas do próprio cinema. Contudo, nesse “Grande Sertão” nada consegue funcionar na íntegra e todo o projeto é comprometido por uma tentativa “Tropa de Elitização” de uma história com paisagem tão distinta, que desloca sua identidade para um lugar que não se torna reconhecível. E nessa distopia caótica, o produto se torna cada vez menos interessado em seus próprios personagens e mais investido na reconstrução de um cenário que nunca se apresenta por inteiro. O espectador sai da sessão com a sensação de que aquela sociedade é tão artificial, que não pode ser sintetizada nem mesmo como um palco para esse barroquismo exacerbado. E este é o maior problema do longa, confundir a proposta performática moderna com exagero simbólico, pois por mais que haja uma proximidade clara, há uma fragilidade enorme nesse caminho. Não por acaso a cena do baile é constrangedora, pois é o cúmulo da saturação desse deslocamento anacrônico que se traduz em uma cultura sem chão para florear.