Desastre e implosão na sala
Por Vitor Velloso
Existem receitas prontas à desgraça, projetos que não estão apenas fadados ao fracasso mas empenhados em sabotar qualquer chance de sucesso. “Godzilla II: Rei dos Monstros” é mais grave que isso.
Dirigido por Michael Dougherty, o mesmo de “Krampus” (2015), o filme do titã é conduzido com a habilidade de pouso de um albatroz. Na primeira cena somos capazes de compreender onde estamos nos metendo, efeitos especiais horrendos, um fogo extremamente artificial, uma câmera lenta que não se justifica e uma linguagem pautada em enquadramentos burocráticos e clichês, além de um zoom in de péssimo gosto (e com uso nada original). A infelicidade está instaurada, não há salvação, a partir deste momento o espectador é torturado por duas horas. Não há adjetivos que não possam ser utilizados para “Godzilla 2”, pois a crítica cinematográfica não é capaz de reconhecer no longa, o verdadeiro evento projetado no ecrã, é um verdadeiro show de pirotecnia, sem técnica. O primeiro ponto citado, os efeitos especiais, é algo essencial ao filme, por razões óbvias, e ainda assim ele é um dos fatores que mais incomoda durante toda a (des)experiência. Percebendo o tamanho do problema que tem em mãos, a montagem se obrigado a nunca permitir planos longos nos monstros, pois seremos capazes de notar frames flickando, texturas mal acabadas e até um blur que nem o excesso de poeira é capaz de esconder.
Toda a proposta de misancene de Dougherty utiliza todos os artifícios datados que a indústria impôs ao longo dos anos, em estrutura, questões dramáticas e formais. Dessa forma, o sentimento é estar assistindo algo do início dos anos 2000. A necessidade de construir drama humano em um filme de desastre é compreensível, pois além da destruição em massa generalizada, a ideia de criar um vínculo pessoal do público com os personagens, ainda que não seja harmônica essa relação, funciona a partir de um controle simples de reação geral. Porém, é notório que grande parte destes blockbusters acabam utilizando isto apenas como recurso comercial, o que é compreensível, já que não trata-se do foco central do longa. Mas em “Godzilla 2”, não. Aqui existe uma imensa necessidade de transformar a estrutura dramática inteira da obra em uma proposta fajuta de trama paralela, que suga do sub gênero de heróis e vilões. Onde vemos o arco mais que manjado de plot twist, que torce à dúvida e deságua na redenção, além da superficialidade de uma discussão parcialmente complexa que envolve diretamente questões ambientais e a complexidade excessiva de uma pauta moral um tanto arcaica (no viés que ela ocorre) que é completamente sufocada por uma questão ideológica, no caso, o assassinato, ou não, dos monstros.
Toda o roteiro nos leva ao nacionalismo tóxico norte-americano, que busca dar voz aos moralistas e ao Estado que detém seu poder de defesa em torno da “segurança nacional”, mas que aqui possui um contrapeso, “ecoterroristas”. A ideia é tão estapafúrdia na trama que chega a ser patética, não há questões políticas, apenas um desenho tenebroso de fanatismo que flerta com um arquétipo religioso, e estadista, pouco convincente, presente no slogan da campanha do longa. Estes “ecoterroristas” que o longa se refere, possui um tempo de tela mínimo, um péssimo tratamento no texto, não somos capazes de compreender suas motivações, muito menos suas personalidades (desperdício tamanho aqui do Charles Dance) e um financiamento absolutamente desconhecido. E claro, como não poderia deixar de ter, o imperialismo cultural massivo que eles praticam durante todo o filme, que é disfarçado de uma política de boa vizinhança, onde eles tratam de defender os mexicanos, óbvio, pois além da ignorância histórica (e crassa) aqui cometida, os mexicanos precisam muito de uma evacuação comandada pelo exército norte-americano em uma cidade pequena à beira de um vulcão, né não? Mas não para por aí. Longe disso. As aparições dos titãs ocorrem em ambientes “exóticos”, Brasil inclusive, mas a resolução só pode ser concreta em território estadunidense, caso contrário a derrota é certa, já que não a presença do famigerado exército da Trumpland. Para buscar um disfarce de tanto grito ufanista na cara do espectador, é necessário uma quebra, aqui realizada nas costas de Ken Watanabe, que apenas possui seu espaço na referência ao longa original, à uma breve sabedoria oriental possível, que termina em um preconceito estrutural terrível, e é um dos cientistas mais tolos já visto (aliás, todos eles).
É impressionante notar como o diretor inicia uma ideia de debate político acerca daquilo que estamos prestes a assistir e abandona tudo em uma tomada de decisão puramente rítmica. Ou incapacidade intelectual. Além da agressividade textual aqui presente (minha), a irritabilidade gerada por assistir algo que busca flexionar todas as temáticas envolvidas no projeto à uma questão bélica, minimamente militar, que nem se dá o trabalho de vangloriar o poder da Força em si, apenas admira com louvor a postura diante das “difíceis” decisões que eles precisam tomar em “prol do povo (norte) americano”. O cúmulo disso é a admissão geral que o ódio e as dificuldades da situação são ditados por cientistas. A postura lembra bastante algo próximo à nossa realidade, não? Educação é um luxo que a honra fálica da fragilidade (aqui) masculina, não pode se dar ao luxo, afinal, um homem tem que fazer aquilo que ele deve fazer, não? E lembremos que capacidade de argumentação pode ser confundido com fraqueza e aliviar a barra à alguém.
Da salvação do homem branco estadunidense à misancene de quinta categoria. Como refletir contemporaneidade na estética digital em blockbuster Hollywoodiano, repleto de moralismos e fuga de debate político? O que Dougherty faz é aplicar uma estrutura clássica à um modelo de destruição em massa e flertar com zooms toscos em meio à batalhas (tão escuras que quase não são visíveis), que vai aplicar uma encenação de dinamismos à uma estoicidade tamanha em sua formalidade. Aplicado por Dougherty, tudo permanece equivocado e fora de tempo.
“Godzilla 2” é ofensivo em todo seu tempo e não merece uma crítica. Muito menos reflexões das atuações duvidosas e da fotografia mais marcada que virada de roteiro faltando quinze minutos pro filme terminar. Destruição atômica e a representatividade do orgulho de uma nação que a gravata e a medalha vale mais que o discurso de quem a filma.