Glauber, Claro
O centro monstruoso do imperialismo
Por Vitor Velloso
Durante a Mostra de São Paulo 2020
“Claro” de Glauber Rocha, não é um filme simples. Trata-se de um manifesto entre o desespero e a esperança, comunhão das divergências e contra a mediocridade imperativa/imperialista da Europa. O projeto de César Meneghetti busca construir um olhar em torno do clássico de Glauber, contudo “Glauber, Claro” não possui a intenção de “explicar o documentário-ficção, sim de contar os bastidores do processo criativo, a recepção e como os italianos lidavam com a personalidade vulcânica do baiano.
Em alguns tons, é divertidíssimo ver os europeus quebrando cabeça para compreender um filme onde eles são o centro do assunto e palco da História. Os críticos trabalham os neurônios para enxergar as ordens de discurso do filme brasileiro, centralizam o debate, mas ainda não são capazes de entender que as reverberações do olhar crítico não surgem de dentro da Europa, mas de fora da mesma. É uma espécie de ocupação desse eixo gravitacional imperialista, onde as denúncias serão feitas contra todos os monumentos ali encontrados, sejam eles a instituição reacionária vigente, a estátua do cavalo “monstruoso” ou os “valores” cristãos (que Glauber compreendia bem) dogmáticos. E cabe lembrar que “valores” é um termo que Glauber discorreu longas vezes…contra.
Assim, o filme de César (ironia do destino) se debruça nessas histórias internas da produção, para cavar nas narrativas distintas de quem participou, algumas respostas. Para isso, o filme esgarça as mangas e entrevista atores, produtores, fotógrafo, amigos, amores etc. É um exercício proveitoso para quem gosta do filme de 75, mas um bocado arrastado para quem busca uma experiência divertida em torno de uma caótica obra. Logo, acredito que parte do público pode desencantar na primeira metade, por não ir além desse compilado de falas acerca do projeto, mas o documentário guarda algumas falas interessantes, em torno da vida pessoal de Glauber e de uma abertura plena em torno de drogas, processo criativo, produção com baixo orçamento e uma intelectualidade que é aberta em torno de sua feitura. O público fica conhecendo alguns feitos do diretor durante as gravações, a impaciência inerente ao nome do diretor de Vitória da Conquista e uma carga de raiva e melancolia que lhe eram comuns.
“Glauber, Claro” trabalha em um modelo de exposição clássico, onde essas entrevistas vão servindo de parâmetro para a exibição de trechos do filme setentista e as histórias vão se somando à parte do filme. Existem alguns movimentos bregas que o filme propõe, como o almoço no mesmo lugar, uma espécie de revisitação de determinados monumentos que se mantiveram intactos etc. Mas dentro disso, há méritos explícitos como a montagem que mostra um cenário em específico que sofreu uma modificação imensa, com o passar dos anos, além de conceber parte daquela geografia que nos é estranha, a partir dessa exposição interna, local. Porém, a monotonia ganha corpo com o passar do tempo e parte dessa exibição se torna repetitiva e arrastada demais, é possível perder o interesse em parte das histórias e toda a dialética-didática, atravessada e violenta, que está presente em “Claro”, se perde nessa recorrência de contraposição expositiva.
A proposta de Meneghetti passa a criar um imbróglio entre uma homenagem e a pesquisa, (re)formulando um clássico axioma em torno dos meios de produção e os caminhos possíveis. As respostas não são simples e é difícil imaginar um posicionamento diferente, além da obviedade de recorrer às análises críticas, não-cinematográficas, das reflexões políticas ali presentes. E os pensamentos estão distantes de uma simples concepção de ideias, sim de um fundamento que se faz presente como um manifesto particular e totalizante, como um paradoxo latinoamericano, que vai ser denunciado posteriormente em “Idade da Terra”. Ao menos, “Glauber, Claro” vai até este ponto e nos lembra a ira do baiano ao ver representantes franceses e norte-americanos, louvados em Veneza, e sua crítica contundente e feroz aos críticos cinematográficos da Itália, acusando-os de reacionário. E aqui, há uma aproximação que o filme faz constantemente, com Pasolini, onde dubiamente os escritos de Glauber aproximavam a figura do poeta, como o documentário tenta fazer, mas o afastava por divergências políticas, ideológicas e os casos dos crimes sexuais, algo que o filme não toca.
Ainda assim, é uma boa pedida para vermos os bastidores de um turbulento filme que marcou um período por sua forma de produção tipicamente Glauberiana, na Itália.