Curta Paranagua 2024

Flee – Nenhum lugar para chamar de lar

Os acordos e as escolhas

Por Vitor Velloso

Durante o Festival É Tudo Verdade 2021

Flee – Nenhum lugar para chamar de lar

O É Tudo Verdade, um dos festivais mais importantes do Brasil, sempre surpreende com projetos que se diferenciam das demais produções contemporâneas. “Flee – Nenhum lugar para chamar de lar”, de Jonas Poher Rasmussen, chega como um dos projetos mais particulares da atual edição. O longa é um daqueles casos que Arlindo Machado debate em “Novos Territórios do Documentário”, trata-se de uma obra que não é facilmente categorizada. Trabalha em campos multifacetados da cinematografia. 

É um documentário feito a partir dos recursos formais da animação, trabalhando com depoimentos e uma arquitetura de memórias que surge como amparo para entre a dramatização de determinadas cenas e a representação dos depoimentos a partir da animação. Contudo, os méritos de “Flee – Nenhum lugar para chamar de lar” não estão apenas nessa transa eloquente entre formas distintas de se trabalhar. O filme é consciente na maneira como articula as particularidades na história de seu protagonista, suas questões políticas e a sexualidade que se torna um medo perpétuo por conta de grilhões sociais, moralistas e religiosos. Um sentimento de perseguição constante que só pode cessar a partir de “coisas que precisam chegar a um acordo”. Frase curiosa que surge na reta final da exibição, findando uma relação entre memória e representação dramática que possui início em um plano objetivo e real. Encerrando o projeto da mesma maneira, essa ideia de uma negociação do real a partir da memória, registro e depoimento é compreendida a partir de uma estrutura que se desenvolve em um dicotomia da carreira e do individual. 

As imagens construídas em “Flee – Nenhum lugar para chamar de lar”, por mais que soem apelativas em alguns momentos (por músicas dramáticas), conseguem dar a dimensão desses acontecimentos para uma posicionamento exterior à da mídia. A postura de introduzir o espectador nesses acontecimentos a partir de suas grandiosidades e violências extremas, formaliza que essa ideia por trás da representação não é a de amenizar os impactos. Pelo contrário, o filme utiliza imagens de material de arquivo para costurar sua construção em torno da história do protagonista e de um problema político mundial. De ordens diversas. O diretor consegue se aproximar de Amin, o protagonista, e demonstrar uma intimidade que consegue revelar muitas forças e fragilidades como poucas entrevistas seriam capazes. E consegue traduzir isso em uma forma que não foge da responsabilidade de criar um diagnóstico, ainda que utilize um eixo centralizador para isso, não criar uma névoa em problemáticas que não estejam diretamente ligadas a trajetória de seu objeto cinematográfico.

Mas sem ceder ao conforto de manter a animação em uma tônica que apenas representa suas ideias iniciais, o filme modifica parte dessa relação para ampliar uma possibilidade de exposição do momento específico que estamos atravessando durante a projeção. Essa animação altera a percepção da “realidade” mas se molda de acordo com o sentimento que está em tela. É algo poderoso que apesar de flertar com certa proposição mimética, não cai em um projeto esteticista da violência e do sofrimento, pois se aproxima o suficiente para não ser tão desonesto. Seria um caminho mais fácil, que renderia algumas indicações internacionais e até algum tapete vermelho, em troca de um produto que a indústria iria se satisfazer. “Flee – Nenhum lugar para chamar de lar” começa em uma espécie de terapia e termina em uma superação, da memória ao reencontro. Não é provocativo para arrancar lágrimas, mas é capaz de fazê-lo por ser sincero em uma abordagem que possui um “arco dramático” muito bem definido, por conta de uma montagem que é hábil em entender o espaço e os depoimentos como parte da resolução formal que rege a obra. A escolha da animação com a cadência da montagem é o que faz o filme ser de uma eficiência única. A história do protagonista é representada com um carinho tão profundo por sua trajetória e pessoa, que o espectador se sente próximo de Amin, como um amigo, querendo abraçá-lo e torcendo para que “as coisas cheguem a um acordo”. Felizmente podemos vislumbrar o selar da realidade e da representação a partir de um sorriso que encerra a projeção, o nosso.

4 Nota do Crítico 5 1

Conteúdo Adicional

Pix Vertentes do Cinema

Deixe uma resposta