Folhas de Outono
A esperança está na desistência
Por Fabricio Duque
Durante o Festival de Cannes 2023
É sempre uma expectativa cinéfila quando um novo filme do realizador Aki Kaurismäki é divulgado. Exibido na mostra competitiva oficial a Palma de Ouro do Festival de Cannes 2023, “Folhas de Outono” corrobora a fascinação de seu diretor finlandês pela metafísica do amor, que existe entre espaços, coisas e outras pessoas, estas traduzidas como seres viventes em estágio fora da percepção etérea, num universo de suspensão da realidade por integrados mundos paralelos no próprio agora. Não, não é nem um pouco fácil definir obras kaurimakianas. E é nisso que reside a maestria deste filme, em questão aqui. “Folhas de Outono” é acima de tudo um exercício narrativo de linguagem. Suas personagens desenvolvem-se por observações analíticas e cognitivas de seus comportamentos-reações, ao terem suas vidas expostas socialmente a nossa passiva contemplação. Aki constrói uma atmosfera de desistência resiliente, transformando esses indivíduos em robôs-zumbis, “adestrados” pelo sistema-dinâmica da sociedade em que compartilham suas esperas, suas noites em karaokês e suas micro-ações diárias, cotidianas, banais e essencialmente motoras.
Na fábula realista de Kaurismäki, não há tempo para se aproveitar o tempo, apesar da escassez das horas extras. “Folhas de Outono” é também uma metáfora à forma como nos relacionamos com os outros neste mundo dominado por uma pressa inexplicável, especialmente pela fotografia que aqui colore com o naturalismo possível um artificialismo de propósito de teatro sonhado e com “cara” de um atemporal passado analógico. Esses seres ficcionais foram levados a existir sozinhos como sonâmbulos, experimentando apenas a ideia de como pode ser a realidade, na grande maioria das vezes sem diálogos, cujo silêncio busca o incômodo, principalmente quando quer imergir uma necropsia filosófica de suas almas enquanto sinapses humanas. Eles foram levados a serem nômades deles mesmo (desajustados, incompatíveis com o externo e incompreendidos em suas solidões), envoltos em uma contemporânea e sem sentido guerra da Ucrânia; e em festas de confraternização da empresa de trabalho.
“Folhas de Outono” quer ser uma escada imersiva. A cada período, aprofunda mais o surrealismo, com certos sentimentos e percepções. Nossas personagens ficam mais expostas e mais diretas. Quanto mais mostradas, mais precisam encontrar o tom da readaptação. Tudo aqui é para soar estranho, desconfortável e ridículo. Eles são sobreviventes em um mundo que não entendem e que não querem estar. São extraterrestres da própria Terra. Aliens e estrangeiros no território que dividem suas permanências. Nós espectadores, ao nos permitir o desbravamento da trama, acessamos referências a Nouvelle Vague de Jean-Luc Godard e ao Neorrealismo italiano de Luchino Visconti e seu “Rocco e Seus Irmãos”, explícito por ter inserido o cartaz no cinema “Pierrot Le Fou – O Demônio das Onze Horas”. Sim, o mais interessante de “Folhas de Outono” é livre inferência, que acontece por conversas descompassadas e em metalinguagem (sobre filmes e Cannes), quase em monólogos, e que seu estilo pode evocar ora Jean-Pierre Melville, ora Robert Bresson, ora Rainer Werner Fassbinder, ora Jim Jarmusch, ora tudo junto e misturado. Mesmo lembrando isso tudo, a mise-en-scène de “Folhas de Outono” não perde em nenhum momento a autoralidade típica e característica desse cineasta que nos invade com questões universais, nos “enganando” com máscaras surreais, que com certeza devem agir em nossas sinapses como comandos-mandamentos. Será que Aki nos acorda do mundo dos vivos e nos conduz a lucidez dos mortos?
Se tivermos que definir este filme, então a melhor a dizer seria que é uma não convencional história de amor, não só entre um homem e uma mulher, que encontram afinidades nas incompatibilidades, mas sobre o próprio mundo que vivemos. “Folhas de Outono” é uma ode à existência, genuína, sem efeitos, apenas nua e crua como a verdade, falada por todas como uma forma de libertação e autoproteção a tudo o que pulula seus redores. Esse amor vem pelo coloquialismo de se enxergar “desespero” em situações mais urgentes e preocupantes, o hospital, por exemplo, e a sensibilidade aguçada da esperança, precisa, cirúrgica e metódica, mas que encontra o lado humano da empatia.
Ao estender narrativamente o close de suas personagens, “Folhas de Outono” consegue atravessar esses mundos paralelos e os personificar em um único instante de seus agoras. Com isso, Aki quer apresentar um antropológico e psicanalítico estudo crítico sobre os seres humanos que antes de existirem como individuais são obrigados a aceitar de forma condescendente a divisão espacial com o outro, “vendido” como próximo e como aquele que pode “fornecer” auxílio à jornada nossa de cada dia. A época abordada, o Outono, é outra metáfora, porque é considerada uma estação de transição, que tem uma queda gradativa na temperatura e folhas caindo. Os dias ficam mais curtos e as noites mais, e há diminuição da umidade do ar. Sim, Aki é um completo filósofo de nosso tempo. “Folhas de Outono” é o quarto capítulo da saga “Protelariat”, do diretor Aki Kaurismäki, formada por “Sombras no Paraíso” (1986), “Ariel” (1988) e “A Garota da Fábrica de Caixas de Fósforos” (1990).