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O Demônio das Onze Horas

A obsessão apaixonante de Godard

Por Fabricio Duque

O Demônio das Onze Horas

“O Demônio das Onze Horas”, do cineasta francês Jean-Luc Godard, é baseado no livro “Obsession”, de Lionel White, mas seu título brasileiro referencia a outro do escritor, “Le Démon de onze heures”, que por sua era o primeiro nome escolhido ao filme, mudando-se para “Pierrot Le Fou”, que marca a direção de seu décimo longa-metragem, visto que é um diretor “autor” inquieto e prolixamente experimental (iniciando o primeiro curta-metragem “Une Femme Coquette” como Hans Lucas – e em 2016, o IMDB já cataloga 131 títulos). Mais uma curiosidade sobre o título é que tanto no livro original, quanto na primeira escolha (que gerou nossa tradução), não há referência alguma a “demônio” e o porquê das “onze horas”. “Pierrot Le Fou” foi lançado em 1965, e na época foi criticado e até mesmo proibido para menores de dezoito anos, pois “alimentava uma anarquia intelectual e moral”.Antes de analisarmos à crítica propriamente dita de “Pierrot Le Lou”, título este que achamos mais coerente e indicado, é preciso adentrar no universo fetiche da Nouvelle Vague (a nova onda do cinema). Esta cinefilia teve seus primeiros passos na França, e é considerada como uma maneira de assistir aos filmes, falar deles e em seguida difundir esse discurso, considerando o cinema em seu contexto como foco principal, mitigado dos gatilhos comuns do clichê e do oportunismo visual de se acomodar na zona de conforto. É um objeto de história. Sua marca é arte de refletir, estimulando o senso crítico das novidades técnicas-narrativas do cinema autoral e de arte. “Todas as suas práticas visam dar profundidade à visão do filme, nos deparamos com uma representação do mundo”, escreveu Antoine de Baecque no livro “Cinefilia”, quase uma “bíblia” dissecada e didática sobre este movimento. Uma das escolhas deste longa-metragem pelo Cineclube Clássicos do Vertentes do Cinema foi exatamente isso: rememorar o passado e revisitar a nostalgia de uma época que nunca perde sua vanguarda, sua utopia adjetivada, sua vivacidade passional e sua tendência estimulada, que não sai de moda.

A Crítica de Cinema, que era embasada e acreditada por François Truffaut, continua nos dias atuais, cada vez com mais força. É o exame de um filme, feito de modo a estabelecer um valor comparado a um objetivo final, que possui características discursivas próprias, e que segundo Fernão Ramos, evoluiu de modo empírico, no sentido de uma busca de respostas aos questionamentos “com base em evidências disponíveis fora dos limites da mente do observador” e “formulam suas interpretações a partir de evidência inter-subjetivamente disponível no texto”. E finaliza que “a crítica é uma arte, não uma ciência”. A credibilidade é a partida e sua regra intrínseca. O Papel da Crítica não é apenas traçar um panorama crítico-cultural-comportamental-geográfico-territorial de um país, mas também tentar identificar similaridades, diferenças e especificidades de uma “linguagem crítica”. E isso “O Demônio das Onze Horas – Pierrot Le Fou” tem de sobra.

Acima de tudo, o filme em questão aqui, é uma ode ao amor. Todos os sentimentos, dificuldades, tédios, novidades, dramas, felicidades, tristezas, limites, projeções, quereres, desejos, humores, tudo é personificado em metáforas que caminham de forma tênue, transitória e efêmera entre elipses temporais de uma a paz pacífica e de uma guerra ativa-plena-vivenciada. Aqui, Godard traduz seu roteiro em detalhes simbólicos, como uma fantasia alegórica de uma fábula-conto realista. “O Demônio das Onze Horas – Pierrot Le Fou” retrata o universo único, particular e idiossincrático de dois “pombinhos” apaixonados que “lutam” para manter acesa a chama da paixão, inserindo jogos de cenas e estranhas viagens desconexas. A narração explica, em palavras (e com música suspense de mistério iminente), fragmentos desta vida em conjunto e “uma progressão secreta e contínua que não é interrompida nem por choques ou sobressaltos”, em uma “onda etérea” de “emanações visíveis” de um cotidiano já saturado, fútil, hostil e “idiota”.

Este embasamento naturalista é buscado e “alimentado” pela referência dos livros, como a cena que Ferdinand “Pierrot” (o ator Jean-Paul Belmondo) lê em voz alta (enaltecendo um discurso inflamado de catarse adjetivada sobre a “História da Arte” – de Elie Fauve – e sobre o pintor Velasquez), em uma banheira, com o cigarro aceso, a uma “garotinha” e “uma criança  oprimida” , que se comporta explicitamente desatenta (e olhar perdido-desinteressado) ao que é dito. É a literatura-filosofia que altera a percepção existencialista da própria vida. E é “rebatido” com “você é louco de ler para ela”.

Sim. O longa-metragem, que foca primeiramente na importância do diálogo, questiona a mensuração desta loucura social, por pontos de vistas individuais que “enxergam” liberdade versus a alienação blasé de se comportar com o outro. Por exemplo, nosso protagonista “deixa” a empregada “ir ao cinema pela terceira vez na semana”, isso porque acredita que a “cultura” melhora a “educação” pessoal contra o “status aristocrático” de sua esposa. “Está passando Johnny Guitar”, (1954) de Nicolas Ray. É bom para ela. Já temos idiotas suficientes (sem arte)”, diz. Cada filme de Godard é uma experiência em que tudo que é discutido (há uma razão para existir) representa o lado-opinião-personalidade pessoal-humano-referencial de seu realizador.

“O Demônio das Onze Horas – Pierrot Le Fou” experimenta sensações principalmente pela quebra da trilha-sonora e dos ruídos sonoros, quanto pela fotografia, que se colore multi utilizado em um que de Kitsch estético, reverberando um cuidadoso e preciso design de interiores, característica desta transição França a América. Outros elementos também podem ser observados: a transformação da utopia na submissão pelo capitalismo. Aqui, valores são invertidos, repercutindo uma transmutação social e uma “transfusão” de poder à mulher (muito pelo conceito feminista de Simone de Beauvoir e seu livro-ensaio “O Segundo Sexo”, observado na cena de sua esposa que o “ordena” pela obrigação “mimada”. Ele tenta ser o “dono da casa”, mas toda a pressão por ter que “engolir” o orgulho para ser “sustentado”. Contudo, Godard desconstrói o próprio contexto (agindo sempre como um implicante advogado do diabo) ao “fornecer” uma “futilidade idiota” a ela, dissecando com crueldade afiada-crítica (eventos como funerais) o meio”: “usar moda das revistas”, “cabelo fofo”, conversas sobre carros, conversas sobre transpiração – esta última podendo ser uma metáfora ao “não suar”) em que precisa “sobreviver”. “Depois de Atenas, estamos entrando na civilização do traseiro”, diz intercalando luzes (avermelhada; esverdeada; alaranjada – noir antiga desgastada como uma foto envelhecida; azulada – “a nuvem de Aquanet”; esbranquiçada) de uma única cor excessiva quase de estroboscópio em cenários. O francês (e a eterna exacerbação da francofonia e da superioridade intelectual) Ferdinand pergunta: “Sempre quis saber o que é cinema?”, e recebe a resposta: “Um filme é como um campo de batalha. Amor, ódio, ação, a violência e a morte. Em poucas palavras é a emoção”.

O filme apropria-se da ideia de que a vida é um livro. Um conto. Uma história. E com constantes interferências interativas de som (a música “Quinta Sinfonia de Beethoven” que “martela a cabeça”) e até mesmo a “conversa” com o público, faz uma necropsia (“a nudez e a melancolia do Olympio”), em que “olhos, ouvidos e boca são máquinas separadas sem unidade”. “Você fala demais. Só escutar cansa”, diz-se quando “se olha no espelho e tem dúvidas de si mesmo”, porque “só vê idiotas”. Será que ele está sendo “abduzido” à padronização social?

Trocando em miúdos, “O Demônio das Onze Horas – Pierrot Le Fou” é um embate de um homem sozinho que fala demais e que luta para se manter “não idiota”. É um grito de socorro-terapia com o propósito de conservar a qualidade intrínseca do seu ser mais imutável. A salvação (uma fuga, uma oportunidade de expurgar o descontentamento de sua alma e o “levante Lázaro” como a “ordem” de se acordar de tudo) está em se aventurar em uma jornada existencialista road-movie com o “novo” amor, Marianne (a atriz Anna Karina), que se torna impossível não referenciarmos (postumamente) seu cabelo a princesa Leia do filme “Star Wars”). “Para querer algo, precisa estar vivo”, diz-se, sem contra-plano (a câmera fixa uma personagem de cada vez). E, ele, morto, no momento, por seres desconexos e “desprovidos” de pensamentos-questionamentos. No rádio, a guerra (“não significa nada”) com “mortes anônimas”. “A vida para todos tem que ser clara, lógica e organizada. Então a vida começa”. As limitações, a utopia e “a quebra da lógica”.

Então, a realidade (imaginada?) cura. Eles seguem o “caminho” de “Bonnie e Clyde” (outra referência póstuma, já que este é 1965 e o americano, de 1967), entre guerrilheiros (precisando matar para sobreviver), “Oasis” (o lugar das armas casas), casas “barracos” no emboço (esta que levanta a máxima do “amor e uma cabana”), e contas orçamentárias na parede. Eles estão felizes. Estão espontâneos. Contam apenas com o prazer “banal” real de um pelo outro (e a “promessa do amor curto e doce” e de “não amar para sempre”), que pode espelhar uma revolução contra-cultura aos “preceitos morais” de uma sociedade detentora que pulula “enlouquecidamente” regras sem sentido. “É uma história estranha”, narra-se, entremeando digressões como as presentes na literatura abstrata. Ferdinand “ganha” o presente de poder iniciar o processo de regurgitar “pesadelos”.

O espectador é confundido por jogos cênicos, manipulações cúmplices, imposição narrativa arrogante (este adjetivo uma das características definidoras da fase de ouro – Nouvelle Vague – do cinema francês), delitos-armações aceitáveis-amigáveis à moda de truques de “O Gordo e o Magro” (abrindo um parênteses, o leitor precisa “viajar” à época de realização deste filme, visto que o conceito de ladrão era um mero batedor de carteira fundamentado na necessidade básica de um ser humano poder resistir e continuar vivo e existente). Eles deixam Paris em uma “rua de mão única”, e talvez seja uma projeção mental do querer da auto-desconstrução, ou talvez um sonho no melhor estilo Luis Buñuel em “O Discreto Charme da Burguesia”. Tanto faz. Realmente não importa. A maestria está em seu contexto, em sua liberdade de galgar existências e dimensões para (re)criar universos realisticamente fantásticos, em seu conceito de transformar até produtores de televisão em contrabandistas, intercalando, na própria narrativa, incursões  “documentais” de cineastas políticos refugiados na França, “terra da liberdade, igualdade e fraternidade”.

Eles, estes errantes, encontram pessoas, contam histórias e ganham dinheiro contado. Outra metáfora? A de que um cineasta precisa mendigar para vencer na vida? E estão vivos na utopia-aventura criada. E felizes com o mínimo para manter uma vida digna. Estão livres, espontâneos e improvisam nas ações-acasos do percurso-caminho (o simbolismo da continuidade das questões cotidianas do relacionamento). “Sempre o fogo, o sangue e a guerra. Tem que parecer real. Isto não é um filme”, diz-se com uma filosofia perspicaz de efeito simétrico aos ouvidos. “Viajar abre a mente”, diz-se. É amor personificado como sombras “através de um espelho”. Nosso protagonista, agora cresce a cada situação vivenciada e lê a história em quadrinhos “L’epatant – La Bande des Pieds Nickelés” (A gangue dos Stooges). “Tudo que ela pensa é diversão”, dito ao espectador (como uma conversa). “Com quem você está falando?”, ela pergunta. “Com a plateia”, ele responde. “Ah, sim”, ela rebate. “Está apaixonado e louco. A mesma coisa” e a “Riviera, a misteriosa ilha” (crítica à aristocracia endinheirada e seu lugar de luxo – “fazer nada, apenas existir”). São sentimentos versus palavras.

As camadas existencialistas aprofundam-se mais e mais. “O amor precisa ser reinventado. A vida real é outra coisa”. E assim, Godard vai desferindo impressões-elucubrações subjetivas sobre todas as coisas. Como o embate “russo versus americano que tenta dominar o único habitante da lua”. O discurso-êxtase-onomatopeia fica ácido, agressivo, intransigente, intenso, desnorteante, desconexo, indelicado, expressivo, imoral, inebriante, até atingir o ápice musical. “Qualquer criatura confrontada com a natureza vai acreditar”. Tornam-se selvagens, índios, caçadores, tudo pelo instinto da sobrevivência e para fazer a essência amor durar. “E terça-feira nada?”, Ferdinand pergunta. Claro que não, este dia da semana tem o Cineclube Clássicos do Vertentes do Cinema. E vocês, caros personagens, estarão presentes.

“A linguagem poética brota da ruína”, “O escritor escolhe seu apelo”, “A liberdade de outros”, sim, o foco principal é a primazia do discurso livre, dotado de emoção. É um deleite. Uma obra-prima. “A música vem depois da literatura. Um disco depois de cinquenta livros”. “Vamos deixar isso de Julio Verne e vamos voltar a nosso filme de Gângster. No fim, a única coisa de interesse é a estrada que as pessoas seguem”.

Ferdinand, ora Pierrot (picardia) e Paul (deboche) encontra afinidade em Marianne, ora Virginia. “Para ganhar algum dinheiro, desenhamos para os turistas “idiotas” (“escravos modernos”)”, enquanto encenam a Guerra do Vietnã para marinheiros americanos. O zoom expande o ambiente, gerando a simetria da imagem como um filme de danças e pulos passionais (improvisados) de Ferdinand. Será que ele sonha acordado com as músicas? “Qual a importância em entender tudo?”, será esta uma questão para embasar a loucura “suruba” de verborragia visual que o cineasta nos proporciona entre o Twist e a atmosfera anos sessenta (com a coca-cola na mesa – que foi tão bem representada no filme argentino “Plata Quemada”, de Marcelo Piñeyro).

Há a tortura da banheira, a “terrível cinco da tarde” (que gerou homenagem de Agnès Varda), o queijo gigante, a elipse da Rainha do Líbano, os espaços, os sentimentos, o boliche (a “parada” divertida contra a continuidade da luta política), a garota sentimental, o “conto de som e fúria”, toda loucura é aumentada exponencialmente, corroborando um filme de frame (instantes). “Te amo a meu modo”, ela diz. É exatamente a ode ao amor. Só que ao cinema. Godard ama do jeito dele. Unicamente, livremente, de forma estranha como se traduz todo amor existente e que “manda” seus atores fazerem “o que for mandado”. É “um velho bordel como em Faulkner”, ou “uma aeromoça que vira milionário em Jack London”.

“O Demônio das Onze Horas – Pierrot Le Fou” conta até “cento e trinta e sete”, é destinado às “belas” e os “belos” e que termina com a explosão interna de uma perdida esquizofrenia sem volta, que inevitavelmente, referenciamos a um “Coração Valente”. Sim, não há contras em “O Demônio das Onze Horas”. E também para que tentar entender o título? Portanto, caro leitor-espectador-cinéfilo-cineclubista, aproveite cada mínimo de cada parte de cada experiência que receber ao ser “bombardeado” com as ideias “subversivas” da definição exata e perfeita da palavra liberdade, que oferece a oportunidade de significação com generosidade desta poesia moderna e eternamente contemporânea.

“O que eu quero acima de tudo é destruir a ideia de cultura. Cultura é um álibi do imperialismo”, “A história deve ter um começo, um meio e um fim, mas não necessariamente nessa ordem”, “Tudo o que você precisa para fazer um filme é uma arma e uma garota”, “Fotografia é verdade. Cinema é verdade vinte quatro vezes por segundo”, finaliza Jean-Luc Godard.

“Marianne : Olhe a última página, há um pequeno poema sobre você. É por mim.
Ferdinard : Tenro … e cruel … real … e surreal … aterrorizante … e engraçado… noturno … e diurno… habitual … e incomum… bonito como qualquer pessoa…
Marianne : Pierrot le fou!
Ferdinard : Meu nome é Ferdinand. Já lhe disse muitas vezes. Cristo todo poderoso! Você me deu a morte!
Marianne : O que você está fazendo?
Ferdinard : [olhando para o espelho] Olhando para mim.
Marianne : E o que você vê?
Ferdinard : A face de um homem que está dirigindo em direção a um penhasco a 100 km / h.
Marianne : [vira o espelho em direção a si mesma] Eu vejo uma mulher que está no amor com o homem que está dirigindo em direção a um penhasco a 100 km / h.
Ferdinard : Então, vamos nos beijar”.

5 Nota do Crítico 5 1

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  • É difícil escolher só UM filme favorito na vida, mas sem dúvida esse está entre os meus favoritos. Estou aqui comentando para dizer que, assim como os filmes, também é difícil escolher UMA crítica favorita. Mas agora que me deparei com essa (2 anos depois da publicação), preciso dizer que está entre as melhores críticas que já vi sobre o filme. Parabéns, Fabricio!

  • Texto pretensioso e mal escrito. Se é a Nouvelle Vague uma ruptura à tradição, não faz sentido exaltá-la através do eruditismo. Não é o erudito o que torna o texto de difícil compreensão, porém, é o uso inadequado e mirabolante dos termos, o que deixa a leitura vazia e complicada. Sentenças pessimamente construídas e pontuadas, primitivas, bancando a erudição: o intelectualismo é lamentável.

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