Flow
Fluxo e uma jornada sobre o próprio sentir
Por Letícia Negreiros
Festival de Cannes 2024
Pena é um sentimento complexo. Afinal, compadecer-se da dor alheia é sempre altruísta? Não devemos interceder e livrar o outro de situações ruins? Se sentir tocado pelo sofrimento alheio é bondade? Se, para nós, o que vemos é doloroso, por que não agir? Levar mudanças a terceiros? Se o que conhecemos é bom e nos faz bem, por que não ajudar quem desconhece? Compartilhar o que acredito ser confortável é generoso?
Gints Zilbalodis, cineasta e animador letão, flerta com uma forte negativa. Se sentir pena é intervir sem critérios em uma realidade alheia, sem entender se o sofrimento sentido por esse outro é de fato sofrido, então não, não é altruísta ou bondoso. Uma necessidade de se autodeclarar bom, talvez. Dizer que fez algo positivo dentro de seus próprios conceitos.
Por outro lado, a pena pode ser comovente. Pode aguardar a devida hora de afligir-se, sabendo que, por mais nervosa que esteja, essa hora pode nunca chegar. Se ela observa e acompanha com uma curiosidade quase infantil, absorvendo os sentimentos mas ponderando se será necessária, então sim, é altruísta e bondosa. E “Flow”, novo longa de Zilbalodis, é digno de pena.
O cineasta nos apresenta um recorte de paz. A luz suave do sol, uma brisa com certeza fresca, árvores verdes e um riacho traquilo. Sem humanos, desaparecidos já há algum tempo, acompanhamos um gatinho preto desbravando o mundo, que até então se resume aquele riacho próximo a cabana em que vive. A enchente destrói o ambiente indefeso. O ponto mais alto das redondezas, de repente, não é mais alto o suficiente. Os resquícios do homem – suas casas, seus barcos, seus desenhos – são apenas o peso de sua ausência. Não há quem socorra o gato ou qualquer outro animal. Zilbalodis nos expõe è dualidade da pena. Aqui, ela não é boa. É dolorosa, gritante, angustiante. O desamparo diante da enchente e da ausência de cuidado é desesperador. Há o ímpeto de resgate e a agonia da impotência. Mas como a pena pode não ser boa se a situação é tão tenebrosa?
“Flow” leva as circunstâncias com o fluxo da água e o gatinho é arrastado junto. Conforme é levado, ora pelas correntes, ora no barco, faz a única coisa que lhe resta: observar. Está desbravando o mundo de fato. O medo em seus grandes olhos amarelos gradualmente dá lugar ao deslumbre. Todas as novidades são maravilhas. A pena torna-se um sentimento bom. Em momento algum descobrimos coisas novas. Sabemos que o mundo é grande. Já vimos coisas belíssimas. Ele não. Somos seduzidos, hipnotizados pelo encanto do felino. É comovente vê-lo se descobrir apaixonado por uma realidade desconhecida. É tão fácil ser convencido a ver com os olhos do gato. O mundo é resultado de seu fascínio. Já sabemos das coisas, mas queremos novamente ir atrás só para redescobri-las com ele.
Zilbalodis nos entrega parte desta magia na construção de suas imagens. A animação de “Flow” é envolvente. Calorosa e receptiva, nos sentimos como pequenos animais na floresta antes de sermos raptados pela perspectiva do pequeno animal. E, ao sermos levados, a animação manipula essa percepção. Suas descobertas se dão em uma crescente, mas nunca são menos impactantes. Cores vibram, luzes cintilam, sombras tremulam. Para ele, tudo é muito grandioso e transforma, para nós, em novidade.
“Flow” nos conduz em uma jornada sobre o próprio sentir. A enchente, enquanto muito real, é também um espelho da jornada de amadurecimento do gato. Sua relação consigo mesmo melhora conforme sua interação com a água evolui. Antes arisco, medroso e desconfiado, agora sabe lidar com essa nova perspectiva de mundo. O gatinho preto também transitou pela dualidade da pena, só começou um pouco mais atrás, tendo pena de si mesmo antes de ter pena do mundo.
O longa de Gints Zilbalodis, já conhecido por “Longe” (2019) e “Oasis” (2017), é o grande representante da Letônia no Oscar 2025. Está concorrendo na categoria de Melhor Filme Internacional, disputando a estatueta com “Ainda Estou Aqui” (2024), de Walter Salles. Passou por outros festivais, recebendo uma indicação ao Prêmio Un Certain Regard no Festival de Cannes 2024 e vencendo o Bright Horizons Award – Special Mention no Melbourne International Film Festival. “Flow” está com estreia programada no Brasil para o dia 30 de janeiro.