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Estrada Para Ythaca

o lugar do luto como o fim do luto

Por Fabricio Duque

Estrada Para Ythaca

Cada ser, humano que é, sente e vivencia o luto de forma diferente e individualizada, ainda que a experiência seja coletiva, esta pela necessidade de se manter a convivência social. Para uns, o sofrer é se calar. Para outros, a máscara da euforia, que atrasa o confronto com a dor. E há aqueles que bebem e partem a uma viagem, obrigando-se caminhar do pesadelo infernal até o acalentar tranquilo da alma, que é o simbolismo do paraíso. O estar pronto para seguir adiante com a vida sem a presença de quem deveria permanecer sempre ao lado.

Assim nasceu “Estrada Para Ythaca” (2010), dos Irmãos Pretti e Primos Parente, integrantes cearenses fundadores da Alumbramento Filmes. O longa-metragem de estreia é um daqueles filmes urgentes e ultra pessoais que precisam ser realizados com o intuito de documentar o ir para transformar a falta em saudosa lembrança quando voltar. Em “A Floresta dos Lamentos” (2007), da realizadora Naomi Kawase, o luto é “mogari”, que significa “o lugar do luto como o fim do luto”, se perder na floresta como sinestesia máxima do sentir. Se na obra japonesa a estrada é indiscutível e indispensável, aqui, os sítios revisados que homenageiam Júlio (1979-2009), que os deixou em 2009, constroem essência e início: a cidade natal do amigo falecido.

“Estrada Para Ythaca” invoca o poeta grego-otomano Konstantínos Kaváfis (1863-1933, que nasceu e morreu no mesmo dia 29 de abril), que escreve o poema “mantenha sempre Ythaca em sua mente, o caminho é o mais importante, sem pressa para chegar”. Este é uma fábula universal, que após uma bebedeira de afofamento de tristezas, acompanha personagens-amigos-reais, espirituosos do “só um passo do sublime ao ridículo”. Entre “palhaços do amor”, cervejas, cigarros, ressacas e discursos passionais, existenciais e político-poéticos de “reações de bêbado” (“a minha maior vingança é viver minha vida” sobre revolução com gaita), nós somos apresentados a uma imagem de quadro fotográfico, de ação contemplada e estendida. Há uma estética coloquial do olhar. Uma construção caseira para aproximar a sensação de intimidade afetiva.

Assim como em “A Floresta dos Lamentos”, aqui nós também temos o compartilhar. Dividir o peso da bagagem. Sim, é uma experiência psico-terapêutica de “fazer juntos essa viagem”. Amigos e a “sorte” de ter alguém que saiba trocar um pneu furado. Eles vivenciam a projeção de um sonho acordado. De acordar um um lugar. Do primitivo à civilização. Cada cena corrobora o propósito de se conectar pelo amador, visto que esta é uma ode à amizade. De instantes. De esperas. De silêncios. De alegrias desmedidas. De introspecções. De choros. De não ter a “menor ideia de onde estão”. A estrada escura os faz parar. “Amanhã a gente vê o que tem a seguir”, diz-se, brindando a “resistência” e dançando como índios-ancestrais em transes à luz do farol do carro.

“Estrada Para Ythaca” é um conceito, um zoom, uma saudade. Com cinco cumbucas de comida, uma ofertada ao espírito presente. “É preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte”, referenciam também a estrada do cinema com “Vento do Leste”, de Jean-Luc Godard e Glauber Rocha. De um lado o cinema da aventura. Do outro o caminho Ythaca com a indicação do cinema do terceiro mundo: “perigoso, divino e maravilhoso”. Qual escolher? Um questionamento crítico de se manter fiel ao alternativo autoral ou aceitar o dinheiro fácil das obras fúteis-populares.

É uma viagem Glauber silenciosa. E alucinógena à moda de “2001 – Uma Odisseia no Espaço”, de Stanley Kubrick. Pois é, a tela preta continuada já nos conta qual foi o caminho que estes jovens sonhadores e cinéfilos escolheram percorrer. O paraíso chega. A natureza. O nirvana e a calma. O arco-íris. E não mais a barba cultivada. Estão prontos para “descansar e dormir”, após “longo tempo e cansado”, ensinado pelo roteiro de Naomi Kawase. A vida continua, “levanta sacode a poeira e da a volta por cima”.

“Estrada Para Ythaca” é um filme improviso em que seus atores são os diretores (Luiz Pretti, Ricardo Pretti, Guto Parente e Pedro Diógenes) e personagens da história. Nós percebemos e aceitamos que é impossível separar ficção da realidade. Uma cíclica jornada de libertação. De volta ao bar e às bebidas. “Ythaca deu-te a bela viagem. Sem ela não te porias a caminho. Nada mais tem a dar-te”. Um brinde à ousadia e à intuição.

3 Nota do Crítico 5 1

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