Em Trânsito
Quem esquece primeiro: o abandonado ou quem abandonou?
Por Fabricio Duque
Durante o Festival de Berlim 2018
Há uma sensação confusa que acomete pessoas que estão em trânsito de viagem: a de não pertencimento por estarem à espera, no meio, pousando entre o ponto de partida e o ponto de destino. Parece-se mais como um portal tridimensional já condicionado pelo acaso e que o passageiro não controla mais sua vida. Ainda que no passado os espaços transitórios fossem maiores, especialmente na ocupação nazista, o ato de aguardar estimula o tédio e a necessidade urgente de tentar absorver o máximo do lugar em que se encontra. Essa é a premissa de “Em Trânsito”, exibido na mostra competitiva do Festival de Berlim 2018. O drama alemão dirigido e roteirizado por Christian Petzold (de “Yella”, “Phoenix”, “Jericó” “Barbara”) apresenta-se como uma fábula filosófica por internalizadas análises emocionais de personagens conduzidos pelo poético e adjetivado narrador. É uma jornada de abandonos e recomeços. “Quem esquece primeiro: o abandonado ou quem abandonou?”, pergunta-se.
“Em Trânsito”, baseado no romance homônimo de Anna Seghers, que ela escreveu no exílio, busca a organicidade da sétima arte por modernizar o passado, o transformando em um palpável presente. Com um que estético-narrativo do diretor finlandês Aki Kaurismaki. Assim, a distância com o público é estreitada e nós podemos sentir não mais a nostalgia do que aconteceu, mas sim um teletransporte de uma viagem ao tempo de antes. As histórias do passado encontram o presente e se combinam. Como em “De Volta Para o Futuro” (de Robert Zemeckis), o espectador adentra na experiência de uma realidade virtual. Dando um tom blasé-hipster, principalmente quando escolhe “Road to Nowhere”, do grupo inglês Talking Heads.
Quando Georg (o ator alemão Franz Rogowski – muito parecido com a versão onze anos mais nova do ator americano Joaquin Phoenix – de “In den Gängen”, “Happy End”) tenta fugir da França após a invasão nazista, ele rouba os manuscritos de um autor falecido e assume sua identidade. Preso em Marseille, acaba conhecendo Marie (a atriz alemã Paula Beer, de “Frantz”, “Diplomacia”), que está desesperada para encontrar seu marido desaparecido – o mesmo que ele está fingindo ser. Para complicar ainda mais, ele começa a se apaixonar por ela.
“Em Trânsito” é muito mais que um filme de guerra. É sobre o desnorte. Sobre a impossibilidade de programação futura. Georg torna-se um joguete do destino, lidando com articulações, com saídas que fogem completamente do maniqueísmo, com sorte, com atitude e com o poder interpretativo de convencer o outro. É a novela de uma vida. Com clima de cinema. Seus atores traduzem-se por sutilezas, expressões contidas e cirúrgicas reações.
É também sobre a clandestinidade. Sobre sobreviver entre moribundos, medos, olhares refugiados, burocracias, intimidações (“Por que o México?”), repressão policial versus revolução, alemão bom no futebol, uma mãe muda-surda. Georg, que cada vez fica mais sortudo, quase avesso às dificuldades, precisa assumir uma nova identidade para se proteger. “Em Trânsito” discute a transição nossa de cada dia. O ser-humano é adaptável. E nos espaços de conexão vidas pode ser redefinidas. Georg é a própria mensagem metafórica do abandono. Segue sua existência esquecendo e se deixando ir. Com ou sem os outros. “Os abandonados não esquecem nunca”, responde-se a pergunta no segundo parágrafo acima.
Talvez o sentimento despertado no tempo de trânsito é que mais defina o propósito da Vida. A de ser uma estrada para lugar nenhum, em que sua espera seja o real momento da liberdade. De contemplar sem a necessidade da proatividade. É um estágio de desligamento das pressões sociais. Nós estamos conectados com o nosso mais puro eu. Não temos nada a fazer. Apenas o de vivenciar plenamente o que acontece desenhado pelo acaso. A aventura de Georg é sua verdadeira libertação.
Mas, no fundo, por mais inevitável que o ir seja, todo e qualquer ser acredita que o melhor mesmo é permanecer onde está, criando mecanismos e subterfúgios de não perder esta sensação, mesmo que novos abandonos sejam cometidos. A narração, à moda de Lars von Trier com a Nouvelle Vague, humaniza as dores da alma e embasa com respeito as reações e os olhares. Entendemos que cada um se expressa de um forma e jeito. E que alguns trânsitos podem ser eternos. “Transit” é baseado no romance homônimo de Anna Seghers, que escreveu no exílio. O filme está ambientado em uma Marselha contemporânea, lugar que esses personagens do passado se deslocam. E assim, os refugiados de lá, da parte de trás, encontram os refugiados de hoje, de cá. As histórias encontram o presente e se combinam para criar um espaço de trânsito eterno.