Elvis
Elvis não morreu, seu legado prova
Por Pedro Sales
Festival de Cannes 2022
We’re caught in a trap. I can’t walk out
O cinema é espetáculo. Para o diretor australiano Baz Luhrmann, isso nunca foi uma dúvida. O cineasta, autor de “Moulin Rouge” (2001) e “O Grande Gatsby” (2013), construiu sua filmografia com um característico estilo burlesco e fantasioso, mantido, aqui, para contar a história do Rei do Rock. Em “Elvis”, a trajetória do artista é um show, dentro e fora dos palcos. Da infância à última performance, Elvis Presley sempre esteve sob os holofotes, ou pelo menos na visão do diretor. Toda a estilização adotada não é mero exercício formal vazio, pelo contrário. Para um rei, toda pompa, brilho e exagero nunca é demais. A fim de demonstrar isso, os elementos de linguagem, como montagem, fotografia e figurino, se associam efetivamente à ascensão, queda e nova ascensão do astro.
O que diferencia este filme de outras cinebiografias de músicos é o enquadramento. O surgimento do Rei do Rock não é visto com esse olhar distante e formulaico, mas sob as lentes do empresário dele, o Coronel Tom Parker (Tom Hanks). É como se víssemos a história da Chapeuzinho Vermelho com a versão do Lobo Mau. A análise não é gratuita, uma vez que o filme se estrutura de forma quase fabular e, consequentemente, maniqueísta. O Coronel é um enganador, um ilusionista que prende o nosso herói em suas amarras. Simbolicamente, ele se orgulha do epíteto “Homem de Neve” – usando “snow” como sinônimo para “truque”. Elvis (Austin Butler), firmado no interior, tem como bases o country do sul estadunidense, o blues dos afroamericanos e a inocência dos heróis. Quando o contrato entre os dois é selado, o sucesso nasce e junto dele, como ervas daninhas, florescem condições exploratórias entre artista-empresário.
A narração de Parker justifica as artimanhas e trapaças do personagem, tenta, por assim dizer, humanizar as decisões e o caráter predatório dele. As consequências enfrentadas por Elvis, no entanto, não facilitam a “redenção” do empresário. Além dessa relação, presente em toda rodagem do filme, existem as relações familiares de Elvis. Nisso, Luhrmann lida com um problema: a historiografia. Mesmo com uma duração que excede duas horas e meia, é um trabalho complicadíssimo resumir homogeneamente 20 anos de história. Dessa forma, alguns momentos são bem sintetizados, como a carreira de Elvis Presley como ator ou sua temporada na guerra, quando conhece Priscila (Olivia DeJonge). Se “Elvis” sofre com essas ausências, por outro lado, a montagem consegue pontuar historicamente os períodos com o uso de fotos antigas, recortes de jornais, fatos históricos e a presença do Rei em programas de TV.
O vigor da enérgica e ágil montagem, que incorpora a agitação dos palcos na forma fílmica, funciona em conjunto com a fotografia de Mandy Walker. Os planos possuem um apurado nível técnico, da decupagem à iluminação. Nas cenas mais dramáticas, a proximidade é evocada por closes, transmitindo uma carga emocional elevada. Entretanto, o principal destaque da fotografia se dá quando o caráter artístico e performático é colocado em foco. As performances musicais colocam o filme no patamar de espetáculo tão prezado pelo diretor. São nessas cenas em que o burlesco atinge o extâse. Elvis requebra nos palcos e o público vai à loucura, sobretudo as mulheres. A aura do Rei do Rock é simbolizada pela iluminação. O tom amarelado e quente, nos palcos, representa uma performance em que o cantor está feliz consigo mesmo. Já quando há o predomínio dos tons azuis, Presley está ciente do ciclo de abusos perpetrados por seu empresário.
Não existe performance sem canções, e não existe Elvis sem a música. Uma das mais utilizadas no longa, até mesmo como motivo dramático, é Suspicious Minds – cujos versos iniciais estampam a primeira frase deste texto. A canção exerce um papel metalinguístico quando o artista reconhece, finalmente, que está preso na “armadilha” do Coronel. Os anos nesse cárcere assinado pelas duas partes põem fim a sonhos do astro e afeta substancialmente sua saúde e relações familiares. O vício em tranquilizantes e outras drogas é apenas o que permite Elvis continuar se apresentando mais e mais.
Apenas os destaques técnicos não fazem um bom filme. A montagem que capta a celeridade e urgência da fama ou a fotografia que se adapta conforme seu protagonista seriam inócuas caso as interpretações não fossem inspiradas. O personagem de Hanks é dependente de uma caracterização massiva, uma maquiagem que o transforma. Apesar disso, ele incorpora um ar cartunesco e canastrão para o Coronel. É exagerado, mas condizente com o caráter forjado na mentira. Austin Butler, como Elvis, por outro lado, é genuíno. A maquiagem não procura anular as particularidades do ator, até porque a interpretação dele não é mera imitação. Os trejeitos, gestos e a voz estão lá, porém não é o principal da performance. Existe, portanto, uma densidade dramática e muito bem delimitada da atuação. Butler emociona nos momentos sensíveis, nas desilusões e nas perdas, o que torna a potência do ator bastante diferente da de Rami Malek, em “Bohemian Rhaspody” (2019), vencedor do Oscar de Melhor Ator, na ocasião.
“Elvis” é uma incursão performática e burlesca na vida de um dos maiores artistas de todos os tempos. O exagero estilístico de Baz Luhrmann faz jus à grandeza do personagem retratado, o seu estilo se aplica ao contexto. É ousado também contar a história com uma estrutura fabular, pela visão do “vilão”. Essa decisão exige uma condução narrativa cuidadosa que é atingida. O destaque visual causado pelos números musicais, bem montados e excelentemente filmados, engradecem a obra, dão verdadeiro foco ao mais importante: a música. Nada disso seria possível, contudo, sem um apurado trabalho de design de produção e sem o magnetismo e entrega de Butler. Por fim, o diretor demonstra que Elvis não está morto, se depender da sua paixão e energia para dar um novo gás ao legado do Rei do Rock.