Dolittle
Sparrow Pouco
Por Jorge Cruz
“Dolittle” é uma das apostas mais pesadas do cinema norte-americano no início de 2020. Ao custo de 175 milhões de dólares, essa estreia mundial aposta no teste definitivo de popularidade para Robert Downey Jr., o dono-e-proprietário do Universo Marvel Cinematográfico desde que estrelou em 2008 “Homem de Ferro“. A adaptação feita pelo roteirista e diretor Stephen Gaghan (vencedor do Oscar em 2006 por “Syriana: A Indústria do Petróleo“) reaproxima o texto da série de livros clássicos do autor Hugh Lofting e da primeira incursão do personagem nos cinemas, com “O Fabuloso Doutor Dolittle“, estrelado por Rex Harrison em 1967.
Somos apresentados a um recluso médico que divide sua imensa propriedade cedida pela Rainha Vitória (Jessie Buckley) com os mais variados tipos de animais, tendo o dom (ou conhecimento) de se comunicar diretamente com eles. Um homem traumatizado com a viuvez precoce, reputa ao seu estilo aventureiro de outrora à morte da esposa, Lilly. O longa-metragem chega ao circuito no mesmo final de semana de “O Chamado da Floresta“, filme protagonizado por um cachorro e adaptado de outro escritor clássico, Jack London. Na crítica do filme, estrelado por Harrison Ford, dono-e-proprietário da Saga Clássica Star Wars, tratamos de um aspecto que será pouco trabalhado pela crítica de consumo. Ali abrimos debate sobre a digitalização humanizadora (até demais) das personagens do mundo animal.
A solução encontrada em “Dolittle” é um pouco diferente e carrega com si aspectos positivos e negativos. Gaghan opta por aproximar o espectador das ações, até mesmo nas sequências de aventura. Além disso, evita o excesso de interações entre atores e “bichinhos inseridos na edição” no mesmo enquadramento sempre que possível. Isso faz com que o CGI não agrida tanto os olhos, dando a sensação de apuro técnico maior à obra. Todavia, esse objetivo é alcançado ao preço de um montagem muito mais ligeira por parte do editor Craig Alpert, responsável por outro longa-metragem difícil, “Deadpool 2” (2018). Isso torna algumas cenas mais cansativas, visto que os momentos em que se imaginava uma espécie de “respiro” no ritmo, com diálogos de transição da ação, exigem mais do nosso olhar. Talvez por isso a sensação para boa parte do público será a de um longa-metragem confuso. Mesmo assim, a maneira de conduzir as cenas é algo bem interessante de ser analisado, mais pela praticidade do que pela inventividade. Muitas das vezes a marcação é telegrafada, com um deslocamento sutil do elemento animado e o consequente reenquadramento total para abarcar o representante de carne e osso do elenco.
Para que o efeito não seja risível, é fundamental a presença de alguém experiente e com o magnetismo de Downey Jr. Ele sustenta bem longos momentos em que, na verdade, produz monólogos reparados na pós-produção. O desapego com as normas e costumes tradicionais comum às suas personagens retorna aqui. A partir do momento em que ultrapassamos o planejamento de Dolittle de fugir totalmente realidade como forma de proteção, o ator está pronto para entregar o melhor trabalho, sendo um pouco ele mesmo. O filme peca ao entregar sequências tão banais quando as interações ultrapassam a figura do protagonista e dos bichos. Michael Sheen e Antonio Banderas estão bastante caricatos em seus papéis. Tanto que seus momentos contribuem pouco para o movimento principal da trama, uma constante em filmes voltados para a família. Tom Holland, que se destacou pela dupla com Downey Jr. nos filmes dos Vingadores, é pouco usado, quase pisca em cena. Funciona bem mais a parceria entre Kumail Nanjiani (o avestruz Plimpton) e John Cena (o urso Yoshi) do que Jip, o cachorro com a voz do Homem-Aranha. Fica com aquela dupla boa parte do sutil alívio cômico, visto que o texto aposta bem mais na aventura do que nas piadas mal encaixadas. Ainda bem, uma vez que Cena ainda traumatiza muita gente que se lembra de “Brincando com Fogo“, um dos piores lançamentos do ano passado.
Se pudéssemos apontar produções primas de “Dolittle” a referência principal seria a franquia “Piratas do Caribe“. Não apenas pelo segundo ato inteiro se passar no mar e a fantasia se inserir em uma crescente ao longo do filme. Essa comparação se justifica justamente pela construção pobre do antagonismo, que troca de mãos porque parece ser um elemento indiferente. Quem também fez isso e sustentou por três produções uma saga foi Shawn Levy em “Uma Noite no Museu“. Sendo assim, a receptividade da crítica, que parece sentir prazer em detonar “Dolittle” não antecipa nenhum movimento mercadológico. Trata-se de uma obra potencialmente forte e mais eficiente em suas formulações do que o concorrente direto “Sonic: O Filme“. Além disso, ultrapassa – mesmo que na “conta do chá” a barreira da diversão mais envolvente, em comparação com os outros filmes em cartaz.
Resta saber se a Universal Pictures afastará o olho gordo em cima de suas tentativas de criação de franquias e não repetirá a tragédia do Universo de Monstros, que se encontra fechado para balança após “A Múmia” ter arrecadado “apenas” 410 milhões de dólares em 2017. A maneira até pragmática como o longa-metragem se desenvolve, criando sequências de ação para cada ambiente, facilita o entretenimento. A aceleração da montagem não será problema para os mais novos, totalmente inseridos nessa linguagem. Tanto que, também em 2017, “Jumanji: Bem-Vindo à Selva” chegou no início do ano com as mesmas propostas e foi um estrondoso sucesso. Por ser esse o público-alvo da obra, as reclamações sobre “Dolittle” deverão ficar mesmo na ala dos especialistas.