Do Outro Lado do Pavilhão

Hipótese estrutural

Por Vitor Velloso

Festival do Rio 2025

Do Outro Lado do Pavilhão

Quando um documentário apresenta personagens tão definidas e uma estrutura formal que se limita a explicitar suas histórias por meio da oralidade, é comum que haja certa monotonia no ritmo da obra. Além disso, a ausência predominante de material de arquivo complementar pode ser vista tanto como uma imersão inequívoca no filme quanto como um fator que restringe as possibilidades de discussão para além do recorte do longa.

O novo filme de Emília Silveira (“Setenta“, 2013; “Silêncio no Estúdio”, 2016; e “Galeria F”, 2016), “Do Outro Lado do Pavilhão”, apresenta sintomas de um projeto excessivamente autocentrado em uma hipótese de manutenção de repressões. Ao estabelecer relações com a ditadura empresarial-militar, mencionada no início da projeção, o filme deixa que sua própria base contextual se fragilize no processo. Essa relação é apresentada de forma expositiva e logo abandonada, para dar voz às personagens centrais do documentário, Érica e Núbia, criando uma falsa sensação de correlação entre os dois momentos históricos — ditadura e presente —, entre as prisioneiras políticas e as protagonistas. Essa “base” inicial só é retomada ao final, de modo holístico e generalizante, por meio de uma citação de Angela Davis: “Prisões são construções onde o patriarcado branco coloca os corpos com os quais não quer lidar”.

Assim, “Do Outro Lado do Pavilhão” parece ser guiado por uma hipótese nunca propriamente desenvolvida, apresentando elementos rarefeitos e quase sempre deslocados da história que pretende representar. O uso de cartelas e materiais de arquivo não situa, não contextualiza e não acrescenta ao projeto, pois sua proposição está fortemente ancorada na relação com Érica e Núbia — em suas trajetórias de vida e condições econômicas, sociais e políticas — e não em um diálogo efetivo entre esses dois períodos distintos do Brasil. Tal abordagem poderia render outro filme, outro debate, outro projeto, mas aqui fica apenas deslocado e sem propósito claro.

Além de essa proposta nunca se cumprir na tela, o projeto tem dificuldade em abranger o território do Rio de Janeiro em uma dinâmica que contemple o mínimo de determinadas falas das personagens. Quando Érica diz que trabalhava de camelô “lá embaixo na cidade, sempre na Praça XV”, o espectador carioca pode pressupor que estamos falando da Zona Oeste ou da Baixada, mas essa condição de território torna-se uma mera formalidade no desenvolvimento de “Do Outro Lado do Pavilhão” que, apesar de possuir um definidor geográfico, ou espacial, no título, não consegue se concentrar em delimitar essas distâncias no município. Aliás, o título vem de uma questão do início da projeção, nessa correlação esvaziada com a ditadura (empresarial) civil-militar, porém não consegue transpor esses distanciamentos em sua estrutura.

Apesar de uma trilha sonora questionável, que procura dramatizar ainda mais, de forma verdadeiramente mimética, a situação das protagonistas, o filme ganha algum fôlego através das descrições das personagens, seja por meio de seus relatos que explicitam a perda de qualquer direito no entre-espaço sociedade–espaço carcerário, seja pelo modo como a questão religiosa parece ser um viés de sustentação argumentativa comum, como um refúgio de respostas prontas e salvações imediatas. Ou seja, a força do documentário está no “intertexto” da proposição inicialmente estruturada. As aspas surgem em razão da verdadeira estrutura formal que se expõe diante do espectador: Érica e Núbia sustentam o filme com discursos políticos, sociais e econômicos do início ao fim, debatendo inclusive a particularidade de seus corpos e sexualidade em razão do isolamento provocado pelo Estado.

“Do Outro Lado do Pavilhão” parece tão perdido em uma lógica que nunca se formaliza na tela, que sua base teórica inicial se confunde com manifesto isolado e deslocado pela força dos depoimentos das personagens. Aqui, fica claro que essa ideia, exterior às protagonistas, é imposta como vontade autoral ou partidária da diretora, ou mesmo da montagem, assinada por João Felipe Freitas e Xavi Cortés. Se houvesse uma concentração maior e mais efetiva nas temáticas que vão sendo abordadas por Érica e Núbia, teríamos um projeto mais eficaz e não tão desconexo de sua própria oralidade. Essa estrutura revela um interesse tão latente em uma construção anacrônica, que desconhece as particularidades de cada situação e de suas próprias personagens, em especial tendo como referencial o território onde estão inseridas, que expõe um esvaziamento das ideias do projeto em tão pouco tempo de projeção. O que é uma pena, pois as personagens levantam uma série de debates que ajudam a pensar a sociedade contemporânea e as diferentes opressões estruturais que as mulheres sofrem, especialmente de determinada raça, região e classe — o que o filme pincela como um movimento político, mas que se reduz a uma constatação de senso comum.

2 Nota do Crítico 5 1

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