Deuses da Peste
Contraponto
Por Vitor Velloso
Assistido presencialmente na Mostra de Tiradentes 2025
No texto sobre a Mostra Olhos Livres, assinado por Juliano Gomes, Francis Vogner dos Reis e Juliana Costa, reflete-se diversos pontos importantes para a análise do cinema brasileiro contemporâneo e seu alinhamento com a temática central da 28ª Mostra de Cinema de Tiradentes, “Que Cinema É Esse?”. Vale destacar dois tópicos mencionados pelos curadores: como o cinema de autor se tornou uma “commodity” e as diferentes formas pelas quais o mercado pode cooptar as produções cinematográficas nacionais. Esse debate atravessa uma série de particularidades, desde a produção e o estabelecimento de um consenso estético via festivais internacionais e, consequentemente, pelo mercado, passando pelo espaço reservado ao cinema do Sul Global nessas janelas de exibição dos grandes festivais, até o caráter exótico assumido pelas temáticas representadas por filmes que estão mais distantes do eixo capitalista central.
Nesse contexto, “Deuses da Peste”, de Tiago Mata Machado e Gabriela Luíza, destaca-se na Mostra Olhos Livres pela experimentação dentro de uma lógica que não apenas rompe com o status estabelecido pelo establishment político e mercadológico, mas também trabalha com a concretude da realidade brasileira, sem a moralidade comum ao cinema cínico e/ou oportunista. Ao estruturar sua representação em atos, o projeto compreende a teatralidade, os gestos e as formas de se posicionar diante da câmera em uma dialética entre a representação em si e a encenação autoconsciente de uma certa artificialidade ou iconoclastia. Essa abordagem remete tanto a outros projetos de Tiago, como “Os Sonâmbulos” (2018) e “Os Residentes” (2010), quanto às obras de Gabriela, como “Sessão Bruta” (2022), além de dialogar com filmes que abordaram discussões políticas nacionais entre as décadas de 1960 e 1970. Não por acaso, a obra não recorre a concessões para trabalhar alegorias como um meio-termo acovardado ao apontar seus inimigos públicos e políticos. Pelo contrário, aqui a diretriz é ser o mais incisivo possível nos apontamentos e críticas à (re)ascensão da extrema-direita no Brasil, como evidenciado em diversas sequências ao longo do filme.
No entanto, algumas dessas passagens, por seu caráter didático, podem soar um tanto superficiais na discussão política ou nas formas de representação da problemática histórica institucionalizada, ainda que esta seja abordada sob a perspectiva de uma “ascensão”. Dessa forma, parte do discurso se fragiliza pela necessidade de explicitação, permanecendo em um lugar de enunciação pouco articulado com a eloquência cênica e estética de “Deuses da Peste”. Aliás, para além das atuações e da consolidação de uma mise-en-scène tão caótica quanto coesa, é necessário destacar a fotografia, assinada por João Rúbio, que compõe alguns dos planos e sequências mais belos entre todos os filmes exibidos na Mostra de Tiradentes deste ano, em especial uma sequência inspirada em “Cantando na Chuva”, que realmente salta aos olhos.
Aqui, além da ousadia estética e da experimentação de diferentes formas de linguagem, há também uma consciência clara das pautas políticas que o filme apoia e combate. Isso se reflete, inclusive, na direção de arte, assinada por Gabriela Luíza, Tiago Mata Machado e Kai Caldas, que reforça um ponto de oposição ao que se estabeleceu no Brasil contemporâneo a partir de 2018, funcionando como uma contraproposta estética, política e social ao pensamento arcaico constantemente ironizado no longa-metragem.
Por fim, “Deuses da Peste” se destaca como um evento significativo na Mostra Olhos Livres deste ano, tanto por sua ligação única e imediata com a temática do festival quanto por sua tentativa de oferecer um respiro ao cinema brasileiro, que frequentemente se vincula a uma estética estabelecida comercialmente e reforçada por festivais internacionais. Essa estética, por sua vez, não apenas fomenta uma certa dependência no que diz respeito à representação e legitimação do cinema, mas também nas possibilidades econômicas de distribuição, ainda que essa garantia seja, em grande parte, ilusória. Assim, o filme compreende a necessidade da “soberania imaginativa” mencionada pelos curadores, manifestando-se de forma disruptiva e anti-consensual. Sua abordagem permite uma contemplação inquieta, por vezes inconsistente, mas nunca conformista, oferecendo formas e trajetórias que desarranjam qualquer tentativa de estabelecimento de um discurso publicitário.
O prêmio da Mostra Olhos Livres na 28ª Mostra de Cinema de Tiradentes está em boas mãos, alertando o público de que a mudança de perspectiva no cinema passa pelo conflito direto entre duas frentes políticas e estéticas que se chocam na programação. “Deuses da Peste” se posiciona, assim, como o contraponto de ruptura total em relação a “A Primavera”.