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Democracia em Vertigem: Uma Reflexão

Democracia em Vertigem: Uma Reflexão

Por Roberta Mathias

Em 1979 o antropólogo Roberto DaMatta escreveu o que pretendia ser e, durante muitos anos foi considerada, a síntese da sociedade brasileira. Em “Carnavais ,malandros e heróis”, o estudioso versa sobre a separação que a sociedade faz entre a casa e a rua e sobre ambientes/eventos híbridos, como o Carnaval : “onde tudo se pode”.

Durante as Manifestações de 2013, eu, uma já não tão jovem estudante de Antropologia Urbana, participei ativamente das convocações e sei exatamente quando senti que algo de estranho pairava no ar. Sabe aquela sensação que se tem quando alguém morre, você perde o emprego ou até mesmo quando não se tem consciência exatamente de que tipo de notícia irá te atropelar? É um frio que sobe pela espinha e encontra morada em algum lugar do seu corpo surgindo como arrepio. Aí, você  pensa: É, perdi.

Depois disso nenhuma caipirinha no Amarelinho foi a mesma.

Não sabia exatamente o que esperar do cenário político nessa ocasião e creio que a maior parte de meus amigos tampouco. Esse era o medo. Será que não iremos fragilizar demasiadamente a democracia?

É nesse cenário que o filme “Democracia em vertigem” se passa e é esse mesmo cenário personagem principal do filme. É possível que alguns historiadores digam que é preciso um certo distanciamento para avaliar as mudanças sociais, análise com a qual até concordo, no entanto, temos pressa. O Brasil já esperou muito tempo e a quantidade de documentários tratando de temas políticos e sociais é reflexo de uma sociedade que percebeu que precisa se pensar e repensar constantemente. Ainda que ,mais tarde, possamos chegar a outras conclusões sobre os documentos produzidos nessas décadas do anos 10 do século XXI.

Entendendo que não se trata “apenas” de saber se foi golpe ou não ou de qual bandeira levantar, precisamos participar da reconstrução de uma sociedade que nunca teve bases democráticas muito sólidas. O frio na espinha, hoje, me parece ser a impressão de que essas já tão frágeis fundações estavam ainda mais estremecidas.

Quando estudamos as sociedades, um dos primeiros ensinamentos passa pela compreensão de que a regras servem como uma goma, mais ou menos flexível, a partir da qual os cidadãos se comportam. É um acordo estabelecido por leis que conectam seres múltiplos com desejos e origens múltiplas. Serve à goma o papel de sustentar e definir quem faz parte do jogo ou não. Toda vez que falo sobre sociedades democráticas, além de Tocqueville, me vem à mente outro clássico da literatura, essa de ficção, “O Senhor das Moscas”. Vejam bem, não estou me colocando no papel hobbesiano de achar que “o homem é o lobo do homem”. Mas qualquer ser contemporâneo há de concordar que regras precisam existir e, se a elasticidade e flexibilidade das regras forem de uma extensão absurda, talvez percamos a centralidade e a importância da própria regra. Algo como: Mas o que nos levou à agir assim mesmo?

Esse é o perigo primordial em qualquer sociedade democrática. Precisamos fazer com que os cidadãos entendam que eles lutam pelos mesmos motivos (pelo menos, porque diante da realidade econômica latino-americana, não ouso falar em bem-comum e direitos igualitariamente mensurados).

O que parece ser apenas uma introdução elucubrativa para a análise fílmica também faz parte da própria análise. Preparo com cuidado o terreno para falar de “Democracia em Vertigem” porque acho essencial que ele tenha sido elaborado dentro do contexto descrito nos parágrafos acima. Primeiro, porque desde a década de 90 com Os caras pintadas, não se via uma manifestação política tão intensa quanto a de Junho de 2013. Segundo, pelas reverberações que esse junho causou.

Tomo muito cuidado com os discursos que dizem que no Brasil nunca houve Democracia porque acho que os mesmos podem ser manipulados e utilizados para fins perversos e também porque creio que as perguntas devam ser outras. Demoracracia como, para quem , onde? Talvez, esses questionamentos estejam mais próximos ao que vivemos no Brasil, um país que ainda não se libertou das amarras escravocratas.  Porém, ainda assim, ainda que seja por uma democracia capenga, rastejante, com pouca audição e visão, precisamos lutar por ela.  Alguns colegas podem me acusar de moderada, outros de esquerdista, mas esse é o difícil exercício de analisar um acontecimento político que se presenciou e do qual se fez parte. É justamente a esse exercício que “Democracia em Vertigem” convoca.

A nossa Constituição considera como direitos fundamentais de qualquer cidadão ”a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados”- Artigo 6º. Sem explorar o fato de que, no momento, estamos ranqueados em sétimo lugar como país mais desigual[2] -atrás somente de seis países do Continente Africano- podemos supor, ou vivenciar em qualquer rua de uma cidade média, que esses direitos não são garantidos à toda população.  Se o nosso foco for, ainda, os Estados mais miseráveis e sem infraestrutura básica, a situação piora.

Vivemos o caos.

Podemos discutir quando exatamente esse caos começou: Se já na chegada dos portugueses que esfacelaram a cultura indígena e, “de brinde”, a de uma série de tribos africanas. Se no Golpe do Regime Militar que perseguiu e torturou centenas de pessoas que não concordavam com suas práticas. Se na instauração da República Democrática, quando conseguimos a proeza de eleger um presidente para depois depô-lo através do Impeachment (ex-presidente este que continua a atuar como político). Ou, se mais recentemente, quando nos rendemos a um falso discurso de crescimento econômico em detrimento do crescimento social.

Isso tudo já é sabido. Creio que todos vocês conheçam os tropeços que nosso país sofreu desde sua “inauguração europeia”, no entanto, acho extremamente necessário lembrar que chegamos até esse ponto através de escolhas (conscientes ou não) que fazem de “Democracia em Vertigem” um filme essencial nesse momento. Não há como diagnosticar com exatidão o que pesou mais para que os últimos acontecimentos políticos viessem à tona.

Porém, vivemos o caos, isso é certo.  O que se pode esperar no caos? Tudo.

Documentário e documento

Uma das questões que perpassam o Impeachment de Dilma é o fato de ser a primeira mulher eleita para o cargo no país. Há que se pensar que, para além da tríade indígenas, povos africanos escravizados e portugueses, a tríade classe, raça e gênero também é fundamental para pensar nossa construção. Somos um país classista, racista e machista. Qualquer que seja minha percepção em relação a isso- e pelas linhas anteriores o leitor já pode imaginar qual é- não há como se fugir de nosso próprio passado.

Para reconstrução é necessária a consciência de nossos erros e limitações. Um de nossos erros foi acreditar que, ao colocarmos no poder um presidente operário e sindicalista, iríamos diluir aos poucos nossas feridas mais profundas.

Não conseguimos, assim como nenhum outro país conseguiria com essa rapidez. Nossas Raízes foram forjadas durante séculos e seria, como foi, ingenuidade acreditar que apenas uma figura- por mais popular que Lula seja- conseguiria reverter o convés do barco. Os governos de Lula deixaram, sim, muitos ganhos sociais, mas nosso operário nunca deixou de jogar o jogo político: “sabedoria” que talvez tenha faltado à Dilma.

Há outra questão, sua sucessora foi uma mulher. E, como descreve habilmente a cientista política e historiadora Flavia Biroli sobre os entraves políticos do país: “A política é atualizada como espaço masculino”.[3] Não quero com isso dizer que o Impeachment foi uma estratégia para tirar uma mulher no poder. Porém, quando as críticas e as acusações atingiram seus níveis mais baixos e “sujos” o gênero da governante foi utilizado como arma( e deboche) sem qualquer pudor.

Biroli ainda se concentra em uma outra questão central que gostaria de abordar. Talvez, o mais básico dos ensinamentos políticos seja a tão usada frase “tudo é político”. E, tudo realmente o é. Inclusive a omissão. Tentar fazer com que algumas reivindicações pareçam menores diante de outras nada mais é que uma tentativa de despolitizar demandas. ”Saúde, educação, moradia, trabalho, previdência social, segurança, proteção à maternidade e à infância, assistência aos desamparados, lazer, vestuário, alimentação e transporte”, lembram?

Ao entendermos as particularidades que compõe o cenário democrático no Brasil, podemos também compreender porque tantos documentários têm se dedicado ao tema em particular nesse momento.

No ano de 2017 foi publicado o livro “Sem saída? Ensaios críticos sobre o Brasil”. Tal qual esse artigo, o livro utiliza-se de uma indagação em seu título. Nele, mulheres atuantes ou próximas ao tema da política se interrogam sobre o Estado Democrático brasileiro e sobre quem ficaria de dentro ou de fora dos poderes que governam para apenas uma parte da população.

De certa forma, Petra Costa ao começar sua jornada em 7 de abril de 2018, data na qual o ex-presidente Lula se entrega, também estava tentando pensar em saídas para uma democracia que já parecia cansada. É com inúmeros flashes que registram a prisão de Lula que o filme começa. A sequência causa um certo incômodo proposital. Não creio que, como muito se fala, o povo brasileiro tenha pouca memória. O povo brasileiro me parece cansado e, esse cansaço nos levou a limites perigosos.

Não, não estou fazendo a Regina Duarte ao contrário, mas toda escolha tem seu preço (as de Petra também).

Ao centrar a narrativa na própria história das escolhas políticas de sua família, chegando a levar a mãe para uma conversa com Dilma, Petra parece querer aproximar o “cidadão comum” do árido  e um tanto confuso assunto que é a política brasileira. Ora parte do micro para o marco, ora a estratégia utilizada é a contrária.

Embora tenha chegado às minhas mãos recente matéria[4] que revela uma certa romantização dos acontecimentos por parte da diretora, isso não me preocupa enquanto recurso narrativo. Fico preocupada, sim, quando ele não é revelado como tal. Até o presente momento, não li entrevistas com Petra comentando o caso, mas me comprometo a revisitar esse artigo assim que o fizer. De qualquer forma, já diria José de Souza Martins,  a única coisa da qual temos certeza é da limitação que produz resíduos sociológicos. O estudioso com isso chama atenção para o fato de que nenhuma narrativa é neutra. Sobre jornalismo e fake News, sabemos: é preciso tentar ultrapassar essas barreiras e ofertar ao leitor uma notícia que, jamais será neutra, mas que se comprometa com os acontecimentos.

“Democracia em Vertigem” conta, inclusive, com uma sequência de dança bem parecida com a de Maria Ribeiro em Outubro. A sequência de Costa também me pareceu coreografada. No entanto, considero extremamente possível criar um documentário com sequências ficcionais. Essas fronteiras rígidas entre documentário e ficção, aliás, se algum dia já existiram, hoje, não fazem sentido algum.

Em minha percepção, o problema é que o documentário explora pouco as relações entre poder, democracia, política e diplomacia. Ele, por vezes, parece preferir focar em uma narrativa cronológica dos acontecimentos e não enfrenta efetivamente os problemas que nos trouxeram até aqui.

Um tanto lento em outros momentos, questão que poderia ser resolvida com uma interação maior com os manifestantes, “Democracia em Vertigem” me parece um importante documento histórico e social , mas poderia se utilizar de recursos narrativos mais interessantes.

Nesse momento, no entanto, é importante separar a obra e sua urgência. Por mais que considere O Paradoxo da Democracia, A nossa bandeira jamais será vermelha e O mês que não terminou – filmes que transitam pela mesma temática- mais potentes enquanto obras fílmicas, é extremamente importante que “Democracia em Vertigem” tenha sido o documentário escolhido para representar o Brasil no Oscar

Nossa Democracia nunca foi sólida o suficiente para estar em vertigem. Ela está, sim, caindo de um eterno precipício. Tampouco sou entusiasta do Oscar, mas não podemos negar a visibilidade que o prêmio oferece aos filmes concorrentes. E, o filme de Petra Costa precisa circular para mostrar um pouco mais – de uma visão- do que aconteceu e acontece no país do Carnaval.

Dessa forma, sou “Democracia em Vertigem” desde criancinha! (com inúmeras ressalvas)

[2] https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2019/12/09/brasil-e-o-7-mais-desigual-do-mundo-melhor-apenas-do-que-africanos.htm acessada em 15/01/2020

[3] BIROLI, Flavia Gênero e Desigualdades- limites da Democracia no Brasil, página 172

[4] https://estadodaarte.estadao.com.br/o-fantastico-mundo-de-petra-como-a-cineasta-inventou-um-passado-clandestino-para-seus-pais/?fbclid=IwAR3PaCid4tVEYFOPwlYug19_WVCiLP2ZFjO0BF8mtfuJe5OsJJv2S2Wzw-M acessada em 15/01/2020

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