A obra-prima política de Costa-Gavras
Por Vitor Velloso
O cinema político sofre com vertentes ideológicas comercializadas pela alta aristocracia, através de subsídios que, brevemente, soam mais interessantes que o fragilizado louro da expressão consciente. Assim, esta forma de se filmar, deixou de se preocupar com a realidade de seu material, para com seu tempo de idealização, mas sim, de representar as ideias de uma minoria detentora do poder. O colapso do discurso político na sétima arte, foi meteórico. Rapidamente, ideias à cerca de uma cultura e/ou uma nação, foram substituídos por pequenas pinceladas temáticas, que serviam mais como “contrabando de ideias” (citando Scorsese), que fatalmente um discurso construído através de raciocínios sociológicos.
Esse materialismo que se perdeu diante da uma História em construção, deve-se pela verticalização das formas de poder, que sempre foram constantes, mas ganharam contornos midiáticos ainda mais intensos no decorrer do século XX. A isenção política, passou a ser uma fachada usada pelos veículos de comunicação, como uma ética e moral acima das próprias convicções individuais. A hipocrisia, que abafa genocidas, corruptos e golpistas, é explícita no próprio ato de se filmar ou escrever. Não há, proposta que inclua. A estética é excludente em sua própria natureza, assim como a moral.
Fazer política é violentar algo. A própria democracia não se consolidou enquanto proposta de governo. Essa violação de morais e éticas, alheias, deve ser filtrada para uma neutralidade Legislativa. Para que a subjetividade, e os achismos, não reinem sobre uma sociedade que deveria ser horizontal. Mas como dito, este não é o papel do cinema. Nem do poeta. E Costa-Gavras retrata exatamente isso em “Z”. Seu clássico de 1969, atualíssimo, busca explicitar como essas relações políticas, são desumanas, e tendem, sempre, a uma reação. Em um jogo, onde ninguém sai ganhando, o que menos se fere, é o mais realista. E quando ser iludido, o faz ignorante, muitos fazem o inverso. Perversidade, sim, mas com um moralismo de autopreservação, que corrói as bases de uma sociedade à beira do colapso. Não há soluções seguras. E quando vemos um frenesi ideológico, tomando conta do início da projeção, entendemos que o diretor não quer deixar de tomar um partido, mas não deixará de fazer sua mea-culpa. O filme conta a história de uma complexa investigação de um assassinato que ocorre ao “Z”, um candidato que discursava, até ser hostilizado e morto. O nome do personagem não é “Z”, esta é a silaba do martírio dada a ele, posteriormente.
Não há honra em um jogo, onde o orgulho dita as regras. Um governo fascista que mente para seus próprios integrantes sobre uma democracia vigente e funcional, um grupo político que age com a polícia e o Estado, uma manifestação interrompida pelo governo, mas que deseja ser ouvida. Tudo isso compõe muitas nações no mundo contemporâneo. E ainda mais, quando o filme foi realizado. A liberdade de impressa, a censura, queima de arquivo… Essas temáticas vão surgindo naturalmente, mas de forma incisiva, em um roteiro extremamente complexo. Seu ponto de vista é claro, e isso contribui para que o espectador compreenda as bases do pensamento do autor.
O juiz, interpretado por Trintignant, tenta manter sua imparcialidade durante toda a investigação, sempre que alguém se refere ao atentado como “assassinato”, ele corrige: “Incidente”. Porém, em determinado momento, vemos ele ceder, e durante uma conversa com uma testemunha diz: “Assassinato”, seu escriba pergunta: “Eu escrevo, assassinato?”. Os fatos, o “corrompe”, não as mentiras. O fotojornalista, que tenta mudar o rumo de um país, através de suas matérias, não o faz por interesse político, mas sim por visar um futuro na investigação que pode impulsionar sua carreira. De certa forma, os dois personagens servem como um pêndulo entre a tenebrosa balança entre a moral e a História de uma nação corrompida por seus governantes.
Hélène, interpretada por Irene Papas, que faz a viúva do político, sofre com a desumanização que a imagem de seu marido sofre. Assim como, a negligência de seu luto, por parte da sociedade, ao criar uma aura de revolução em torno da imagem de sua família. Em determinado momento, uma pessoa vem ao seu encontro dizer que a revolução está para acontecer, pois as investigações irão acusar determinados culpados. A política não entende que sua dor, não se refere a perda de um político que buscava a igualdade, mas sim de seu marido.
Acompanhamos um governo militar opressor, tentando romper as investigações a qualquer custo, tentativas de assassinato e comprando um grupo religioso e político, que não luta nem pela direita, nem pela esquerda. Conceitualmente, a luta entre os polos ideológicos, gerou uma bipolarização no pensamento social, causando guerras e mortes sem o menor propósito. A bipolarização é o maior dos males sociais da humanidade. Então, seria interessante um grupo que se recusa seguir uma das duas ideologias, ser um divisor de águas em uma manifestação de provocações de ambas as partes. O problema, é que uma sociedade em situação liminar, vende ideias e discursos, através de lealdade a quem lhe oferece maior quantidade de poder. E no filme, acompanhamos este grupo extremista, compactuando com a Polícia Militar, que por sua vez está sendo manipulada pelo Exército. Esta pirâmide de poder estatal que sempre afunila para quem demonstra menor estabilidade em suas parcerias, acontece em qualquer esfera política. Sendo assim, vemos personagens do filme, serem descartáveis para seus companheiros e outros, que foram prometidos em cargos e afins, serem privilegiados por seus superiores.
Yago e Vago são meros peões deste jogo de tabuleiro, porém, o fanatismo de ambos cria a falsa verdade que há alguma importante função para eles, e que seus “atos heróicos” serão recompensados de alguma forma. O ego dos personagens, se contenta com o “estar na capa do jornal”. Esta pobreza de espírito, infecta a todas as instâncias deste complô medíocre e tensionado ao fracasso patético. Ainda que observemos um esquema perverso obter algum progresso, entendemos que a resistência é permanente, ainda que inconstante.
A grande chave para se entender os acertos milimétricos de “Z”, vêm de uma montagem que possui um ritmo acelerado, e digressões temporais. São cortes secos, que vão e voltam no tempo sem o didatismo comum. Esta proposta de uma montagem de conflito, intensifica a proposta intelectual da obra. Baseado no livro de Vassilis Vassilikos, que eu não li, o filme monta uma acidez repletas de sarcasmos e ironias, para criar uma alegoria de um evento fatídico acontecido na Grécia, país de origem do diretor.
Françoise Bonnot compõe a montagem, a partir destes pequenos intervalos, criando um dinamismo frenético. Suas elipses parecem congelar o tempo para gerar um pensamento pessoal do personagem. É incrível ver como interrupções tão abruptas na continuidade de uma montagem, soam orgânicas dentro do longa. E auxiliada a essa velocidade do projeto, a câmera de Costa-Gavras é inquieta, muda seus ângulos, suas perspectivas e passeia por uma mise-en-scène industrial composta pelo autor. Esse mecanismo estético gera holofotes nos atores, obrigando-os a serem mais incisivos em seus gestos, o que à priori é uma teatralidade não intencional, transforma-se em estilo hiper-dramático, auxiliando o tom hiperbólico e urgente que a narrativa requer.
A direção de fotografia é do gênio Raoul Coutard, que desenha a luz com uma proposta de ataque direto aos seus objetos. Não poupa uma nivelação do campo temático. Raoul já havia trabalhado com Godard, Truffaut e Demy, logo compreendia uma postura ideológica diante do mundo, que permeava um discurso em tom de denúncia, ainda mais por parte dos franceses, que estavam em movimentações políticas que resultariam no icônico maio de 68. Não por acaso este filme foi escolhido para ser o Clássico do Festival Varilux, de 2018. Ao tratarmos desta vanguarda cinematográfica, entendemos que em 1967, ao fazer Week-End à Francesa, Godard invocava este espírito revolucionário dos movimentos estudantis. Não por uma defesa específica de pensamento, mas um descontentamento que atingia a mais de uma esfera ideológica.
Tudo isso é compreendido por Costa-Gavras. E retratado a partir de suas vivências, suas experiências com a ditadura na Grécia. Por isso, “Z”, não poderia ser filmado por outra pessoa. A intelectualidade era um fator comum entre eles, mas apenas sua pele havia sido tão marcada por uma História opressora e imperialista. O que me lembra um texto de Jairo Ferreira sobre o “Duas ou Três Coisas que Sei Dela” (também fotografado por Coutard), onde o crítico já expõe sua opinião no título: “Godard nunca passou fome?”. Explica que admira a inteligência de Godard, mas que seu ritmo era aborrecido. Logo em seguida, Jairo faz uma crítica sobre “Ritual dos Sádicos” do Mojica. O que expõe um argumento extremamente válido: É claro, que o discurso da Nouvelle Vague francesa era importante, mas ainda não atingia o cerne do problema terceiro mundista.
E como o grego havia entendido o que era um retrocesso no processo democrático, através de um golpe político, feito por militares. Ele teve um lampejo do que seria um subdesenvolvimento, ainda que seu país tivesse a base Histórica mais antiga da Europa. Esses embates antropológicos, sobre um país que despenca sobre si, é a alegoria de uma polícia complacente com um movimento extremista, que divide forças com uma potência militar que comanda o Estado. A partir desta visão, a figura do General torna-se a mais opressora do filme. Onde vemos suas tentativas de impedir uma figura de mártir surgir das bases sociais. E o comandante da polícia se ausentando sempre que possível das investigações que caminham diretamente a ele.
A enunciação da tragédia que acontece em seus primeiros minutos, enfatiza o caminho percorrido pela trama. Sabemos que seus eventos serão trágicos e sua conclusão pessimista. Acompanhamos com esperança, na ilusão de uma revolução embrionária. O natimorto político, tão pungente quanto o cinema brasileiro, se esvai pelas próprias ideias que apresenta. Pois, sua solidez depende do apoio político. E o Estado foi comprado por um imperialismo mercadológico internacional. Então ao vermos as coisas se encaixando, podemos por alguns minutos, vislumbrar-nos com a verdade, ainda que momentânea. Para que em seguida, o diretor introduza a realidade dos fatos, quebrando as expectativas do público. Não sendo pessimista, mas realista.
Gavras entende que o poder corrompe, e quem o detém, não mede esforços para perpetuá-lo. Assim, a revolução não passa de um sonho lúdico pequeno burguês, que não consegue atingir a massa. O discurso pode ser sincero, mas sua erudição não compreende os degraus sociais. E quando os argumentos são escassos, a violência torna-se uma solução imediatista. E como ética e moral são palavras escritas em sangue, para a política internacional, aquilo que possui traços nacionalistas, pende ao fascismo ou ao completo delírio. Tratando-se de um complexo de respostas e reações, a política não se mantém equilibrada, ela sempre irá tombar para o lado que detém maior influência.
Concluindo que a verdade é manipulável, qualquer um pode transmutá-la, buscando seus interesses a curto ou longo prazo. Paciente, é o louco nu, que se manifesta com um cartaz branco. Modificando, mas fazendo alusão, ao poema de Quintana. Por isso, a urgência é o fator mais importante dos trâmites do Estado. Em um diálogo da cúpula do candidato, um dos homens diz: “Porque não pegamos em armas?”. A compreensão que uma revolução não é feita a base do diálogo, é óbvia. Mas como busca-se manter algum grau de civilidade diante dos olhos da população, a conversa, é a arma dos políticos. Ainda que fora das câmeras, o animalesco tome conta, e diversos predadores se atacam sem nenhuma solução em mente.
O Brasil atual perdeu sua vergonha, esse comportamento instintivo e agressivo passou a atuar diante das mídias, inclusive inflamada pelas mesmas. A mídia monta o circo para que os empresários liberem seus animais, os engravatados eleitos, ou não. É onde se encerra o raciocínio de “Z”. Quando as máscaras caem e o que era claro, torna-se público. Não há revolução através das palavras. O Estado fascista impede a proliferação de ideais que não o favorece, assassina a filosofia e irrompe com a sua verdade, empurra goela a baixo fatos montados. Se o que vemos no filme é ficção, o que vimos acontecer com Jango e diversos outros casos de queima de arquivo explícito, não.
Costa-Gavras compilou o pensamento da decadência intelectual, o moralismo e ética transeunte de uma década inteira (nem ele sabia que de um século inteiro), em uma obra-prima que expõe as falácias e artimanhas de um governo fascista, para se perpetuar no poder. O resultado que se vê na tela, é um documentário que se diz ficção, assim como muitas situações da política atual. O que nos resta é introduzirmos essa hiper-realidade, no campo das mentiras, e lutarmos para que a verdade seja exposta, ao menos uma vez.
1 Comentário para "Crítica: Z"
Foi um prazer ler sua crítica, Vítor. Os instrumentos de análise acerca do filme estão perfeitos e, desde agora, você já ganhou um seguidor. Continue assim, rapaz! Parabéns!!!