Rafiki
É pau, é pedra, é o fim do caminho
Por Gabriel Silveira
Durante o Festival do Rio 2018
Num primeiro momento “Rafiki” desperta uma curiosidade gostosa. Aquele momento onde se entende aquele papo de que a Arri tenta modular película de uma maneira esquisita. E, assim, se é esquisito ou não, não sei, mas apoio total quando o arco-íris composto pela direção de arte do longa, somado ao codec monstruoso da Arri, faz a paleta de cor desse filme, em uma telona, parecer um onírico comercial de uma loja de doces que bota muito Technicolor no chinelo.
Bem, fora isso, não me sinto muito à vontade ou pilhado de debater sobre Rafiki. Infelizmente o projeto queniano, que foi bancado por times franceses e holandeses, desaguou naquela bitolação colonizada que sempre bate na porta do nosso receio perante essas coproduções. O discurso LGBTQ+ progressista muito válido; um casal lésbico descobre o amor em meio a política homofóbica regente de sua cidade. Vivendo tal paixão em segredo elas conseguem escapar das penalizações populares, por um tempo, até que são pegas em flagrante e, não somente seus mundos caem abaixo, mas também, são barbaramente violentadas para logo em seguida serem “purificadas” pelo culto evangélico local. Soa familiar para alguns de vocês?
Revisitando o filme em minha memória, diversos meses após o Festival do Rio, é bem engraçado compreender o quão esquecível a obra toda é. O discurso é sim válido, mas a estruturação toda da coisa vem a ser uma propaganda pedagógica de sala de ensino fundamental, ordinária e medíocre no sentido mais cru, um bife mal passado que não volta pra chapa. O espírito da encenação vem num ritmo onde as personagens estabelecem uns vínculos melodramáticos que mais parecem roteirizados por um estagiário de Malhação.
Um videoclipe de 90 minutos regido pelo olhar exotizador de uma direção de videoclipe da Shakira. Ainda, nenhum dos artifícios desta feira de recepção carmen miranizada dialoga de maneira alguma com a frágil estrutura e barata teleologia do drama. O que tá no horizonte é sempre uma saturação, uma estetização rasa do que seria a paleta de cores mais gritante que aquela dimensão teria a oferecer aos olhares externos do mercado de stories globalizados.
Como disse anteriormente, “Rafiki” não é que o discurso não seja válido, é urgente. Porém, a execução da encenação é de uma esterilidade tão insípida. Ninguém nos quadros tem química alguma, uma relação de arquétipos de crônicas de vila interiorana que quer ser João do Rio mas sai que nem a poesia ruim do tiozão roqueiro de Fernando de Noronha; os parâmetros de sonhos e desejos que são ensejados pelo casal parece que foram retirados diretamente de um pastiche mal feito de Curtindo a vida adoidado. Levando a suspeita: Você tá tentando denunciar esse neocolonialismo globalizado, está tentando vender isso pros seus amigos franceses e holandeses, ou, seu imaginário foi tão deturpado por essas imagens ao ponto de essa ser o único viés que poderia seguir?
Claro que a Variety e o Hollywood Reporter amaram, foi tudo decupado sob medida para eles. O filme como zênite da estagnação/erosão do sub-gênero do melodrama LGBTQ+. Fugir da hegemonia na forma é impossível quando se tenta marcar qualquer tipo de presença no mercado ocidental, e nem to falando de uma busca utópica barata de vanguarda diferentona, acho que eu só estou entrando em um estado desilusão e desgosto total, aquele que nos deixa num transe, num choque quando compreendemos nossa impotência absoluta perante a força atômica das vontades dos acionistas.
A tradição morreu, se foi para sempre, resta apenas o trending e a galera que só escreve seus textos no fórum em inglês. Porque nem mesmo pensar em somente uma língua colonizada é o suficiente, devemos rir em trump também. Falar de codec, falar de cinema, falar de escola francesa, falar de cinema novo, que acha que está falando de Brasil falando de quem fala de Hegel, falar de miséria, falar de negritude, falar de privilégio, falar do outro, falar de si, falar da coragem, falar do medo, falar de resistir. Falar da dignidade que vira vergonha, do terror que vira voto, da saudade que vira trauma, do ciclo que vira replay. Falar Tupi, falar Amazona, falar Rio, falar Bala, falar Quênia, falar Pernambuco, Falar Carnaval, da chuva de ouro que nem as águas de março podem limpar.