As teóricas camadas políticas pela revolucionária verborragia literária de Godard
Por Fabricio Duque
“A Chinesa” representa, na filmografia do cineasta francês Jean-Luc Godard (de “Acossado”, “O Demônio das Onze Horas”, “O Desprezo”), um de seus longas-metragens mais revolucionários, e conta a história de um grupo “classe” de jovens da mesma universidade, que, durante suas férias, se embebeda da utopia política ao tentar incorporar princípios maoístas ao seu cotidiano político, debatendo temas políticos e sociais. Eles cansam-se de teorizar e decidem investir em medidas mais extremas contra o que eles consideram injusto.
O filme tem, logicamente, narração de discurso politizado a favor das classes trabalhadoras, em um tom de voz misto de força com timidez. Revolta com submissão. Buscam entender a estratégia socialista e o uso de força contra a burguesia dos inúmeros livros “devorados”.
“Uma palavra é o que não é dito”, diz-se. “A Chinesa” incorpora uma filosófica verborragia de cunho existencialista-terapêutico, provocando a catarse pelas palavras uma a uma arquitetadas em suas literais definições (“som e matéria”). Pensa-se a utopia com distopia. “Nós somos os discursos dos outros”. “Confrontar ideias vagas com imagens claras”. Personagens conversam trivialidades cotidianas sem aparecer. O discurso militante não dá trégua. Vivencia-se um estilo de vida retroalimentado. Não há nada mais que pensar e questionar a política capitalista ouvindo em uma rádio Pequim e as ideias do chinês Mao Tse Tung.
Os ruídos repetitivos e aumentados, cortes rápidos, frases de efeito nas paredes, a revolução cultural chinesa, os marxistas-leninistas da Sorbonne, todos os livros com capas vermelhas não identificados, a morte de Stálin, crianças argelinas, Malcolm X, entrevista a um ator que explica o teatro – uma reflexão sobre a realidade – (entre histórias, fotos e buscas ao conhecimento), tudo é desenhado pela metalinguagem conceitual, de protesto visual vídeo-clipe, divertindo-se com “sinceridade e violência” em reações ensaiadas e teatralizadas de um filme dentro de um filme.
“Uma minoria na correta linha revolucionária não é mais uma minoria”. Companheiros de luta apanham de outros comunistas e não dos esperados fascistas. “A Chinesa” é o filme mais político de Godard. Não há espaço para romances (ainda que se preocupem com o recorrentes “eu te amo”), apenas paixão incondicional e fervorosa pela causa. “Um filme em construção”, escreve-se em determinado momento. Sim. Ainda hoje não acabou.
Um dos personagens, Guillaume (o ator Jean-Pierre Léaud), um ator, diz, não para câmera, e sim, diretamente ao público, que “busca em todos os atores e todos os cenários seu grande discurso mudo”. A vida é “muito complexa” até mesmo para assistir um filme que quer ver: “8 e Meio”, de Fellini.
“A França de 1967”, ano do filme, “é uma grande louça suja”. Eles, seus personagens, descarregam em palavras todos os pensamentos. Não os filtram. Como se fosse um brainstorming. Uma tempestade cerebral de ideias cruas antes da lapidação. “A sociedade neo-industrial não se enxerga e busca sua alma em seus opostos”. Uma entrevista, intercalada, aos atores, constrói os bastidores sobre seus passados, motivações e mudanças. Uma conta, com os olhos estáticos e robóticos – que olham individualmente para dentro, que chegou a Paris quando o “metrô já era escuro”. Sua loucura é aparente, explícita, confiável e inofensiva aos outros. E que precisou se prostituir para sobreviver. No seu coração, “o sol nunca se põe”.
Nós espectadores embarcamos na loucura criativa e passional de Godard, que constrói a narrativa sem padrões, de forma descontínua e de liberdade subjetiva, quase amadora. “No campo, as mulheres são muito transtornadas”. O filme invoca nossa contemporaneidade por não ser datado, pelo contrário, é atualíssimo. “A Chinesa” reverbera as regras do manifesto comunista. “Um comunista precisa ser devoto, colocar a revolução acima da própria vida, sempre fazer a pergunta “por que?”, nunca deve considerar-se infalível e arrogante, e nunca achar que está sempre certo”.
Eles estudam filosofia integral com um professor negro, uma minoria, que estimula neles, os alunos, o pensamento e a “consciência”. Como exemplo, podemos trazer o exemplo de nosso presente atual, a temática abordada no filme “Capitão Fantástico”, de Matt Ross e um pouco mais antigo, em 1981, “Eles não usam Black-tie”, de Leon Hirszman (com texto de Gianfrancesco Guarnieri – que provavelmente teve este, em questão aqui, uma forte influência.
Enquanto uma empregada limpa a poeira de um sapato em “A Chinesa”, percebemos que todos os planos e detalhes assistidos possuem uma afinação crítica, questionadora, provocadora, não autoritária e contextual. Durante o filme, é intercalado um ‘footage’ de fotos referenciais e livres instantes do cotidiano.
“A chinesa” é, acima de tudo, uma aula adjetivada de filosofia e comunismo ao cinema, em que, nós espectadores, somos alunos passivos. “Buscar a verdade dos fatos, que são coisas e fenômenos que existem objetivamente. A verdade une. Buscar é estudar”. Podemos traçar um paralelo com os dias de hoje quando observamos que o discurso continua o mesmo. Exatamente igual. Não se mudou uma vírgula. A filha de banqueiros que se envereda pela teoria da revolução faz lembrar a personagem filha sequestrada (a atriz Amanda Seyfried), que vira uma “Robin Hood” em “O Preço do Amanhã”, de Andrew Niccol, e emprega a prática, a ação, saindo do campo apenas das ideias.
“Acha que livros devem ser queimados?”, pergunta-se como uma referência a “Fahrenheit 451”, livro de Ray Bradbury, que vira filme nas mãos de François Truffaut. “A juventude é uma chama e ódio, amor, tristeza e felicidade”. “Teoria da literatura: um filme de Nicolas. Ray”. Amam-se pela troca de inteligência. O exercício físico enfático das palavras. “Os imperialistas ainda estão vivos”. Todos são alunos e professores.
“Acredita-se que Lumière inventou as notícias, pois ele fazia documentários”, diz-se mais teorias, agora sobre o cinema Georges Méliès, o “impressionista”. E Serguei Eisenstein. “Os americanos largaram mais bombas em um minúsculo país que durante a guerra mundial”. Depois, os russos. Depois, os chineses. França. Inglaterra. Cujos Argumentos são encenados com óculos “especiais” de cada país referenciado. “E o Vietna não é um personagem?”. Depois “Capitão América”, e rádios e câmeras que viram armas.
“A Chinesa” é representado por esquetes que exemplificam os discursos, como números teatrais de “intervalos” quando estudam todos os “fatos” (em todos os livros e seus autores), os dissecando, palavra por palavra, a fim de formar uma opinião, e mais, para encontrar algum “ideal”. É uma ode ao movimento socialista que precisa sobreviver na “armadilha abundante do capitalismo” reinante, dominante, pseudo-integrador e que faz “apologia ao poder, luxo e esnobismo”.
“O homem é uma ideia inventada pelos modernos e que pode ser superada”, diz-se. E, uma digressão-parênteses: é incrível a semelhança da atriz Anne Wiazemsky, que interpreta Veronique, com a atriz Adèle Exarchopoulos, de “Azul é a Cor Mais Quente”, de Abdellatif Kechiche. Tanto que a atriz de 1967 despertou em Godard o encantamento, e, durante as filmagens, eles apaixonaram-se. Fecha parênteses.
Aqui, “a arte inventa o visível”. Eles são “os sonhadores” em três movimentos, pensando intermitentemente sobre tudo. A parte da entrevista-conversa com Francis Jeanson, escritor de “Sartre e o problema da moralidade”, um filósofo francês ativista durante a guerra da Argélia. Este momento para um destes alunos significa a prova final. O embate. Saber se o que aprendeu, ficou gravado. E que quando o argumento terminar, não, de forma passional e infantil, como uma criança mimada, dizer que quer “fechar a universidade com bombas”. “Se matar os professores e alunos, eles deixarão de ir”.
Este radicalismo infundado perde pontos. “Fazer a revolução pelos outros?”. Eles precisam estudar mais que “dois anos”. Precisam seguir melhor o manifesto comunista, porque as lições estão “abstratas”. Lá dentro, eles comungam de seus achismos limitados e urgentes. Lá fora, são engolidos por argumentos embasados dos outros, que leram muitos mais livros e que tem a “sorte” da maturidade. Todo o filme é conduzido a esta cena. A este confronto de ideias entre gerações. Uma corroborando a prepotência agressiva da juventude. A outra embasando com certeiro embasamento esta arrogância.
Mesmo conversando sem se exaltarem e ou partindo à violência das palavras, ela, que é “apenas uma trabalhadora produzindo a revolução”, retorna ao “dentro de lá” para que possa melhorar suas notas práticas e cometer mais erros decorrentes de suas revolução. “A liberdade nem sempre tem as mãos limpas”. Não é o “silêncio” que os amedrontam, e sim “o som e a fúria”. “A Chinesa” finaliza dizendo que “tudo que é ficção deixa mais próximo da realidade”. Concluindo, um longa-metragem obrigatório para assistir muito por causa dos acontecimentos revolucionários que acontecem em nossos momentos atuais. E lembrando que este filme é de 1967, um ano antes da revolução mais definitiva da História do Mundo, principalmente na França. O filme recebeu o Prêmio Especial do Júri no Festival de Veneza em 1967. Recomendado.