Crimes do Futuro
Corpo e pensamento
Por João Lanari Bo
Festival de Cannes 2022
Se quiserem, podem meter-me numa camisa de força
mas não existe coisa mais inútil que um órgão
Quando tiverem conseguido um corpo sem órgãos,
então o terão libertado dos seus automatismos
e devolvido sua verdadeira liberdade (Antonin Artaud)
A cirurgia é o novo sexo, pregam os personagens de “Crimes do Futuro”, o novo longa do visceral David Cronenberg – a dupla de protagonistas, Saul Tenser (o sempre enigmático Viggo Mortensen) e Caprice (a cristalina e translúcida Léa Seydoux), operam performances ao vivo onde a dor, esse feeling arcaico da humanidade, é sublimado em arte, por meio de robôs-cirúrgicos comandados por controles gelatinosos, ambos, robôs e controle, desenhados entre o art déco e o science fiction. Movidos talvez por um desejo de preencher um vazio que assola as relações mundanas – afinal, não é este o desejo de toda arte? – a dupla combina o toque sutil de Caprice com a disposição de Saul de levar o corpo ao limite em nome da arte, abrindo o seu próprio corpo para extração de órgãos produzidos em excesso, como se estivesse em estado de gozo sexual. A plateia, pequeno grupo de pessoas reunidas em uma galeria de arte, exulta com a ferida aberta, com a extirpação do novo órgão, como se fora …uma relação sexual – alguém murmura: é o novo sexo. Saul deixa-se levar pela onda do prazer, deixando-se exibir visceralmente, regozijando-se com a dor e o esventramento, tal qual o hara-kiri dos samurais do Japão feudal – como se estivesse emancipando-se da existência autômata e opressiva por meio da alienação de órgãos, como preconizava o genial Artaud. Mais tarde, visitando o “Registro Nacional de Órgãos” – duas ou três salas decadentes ocupadas por dois burocratas apatetados – Saul é assediado pela obsessiva e sexual starving assistente Timlin (Kristen Stewart), mas recua, mesmo depois de um voluptuoso beijo: Desculpe, eu não sou bom no antigo sexo, confessa, constrangido.
Nesse filme, rodado na capital grega Atenas, eclética e também art déco – algumas locações remetem à Lapa carioca – cores esmaecidas e ambientes fechados estimulam a sensualidade da captação fotográfica, desvelando um erotismo gore movido a maquinaria, fisicalidade e entranhas corporais, no limiar do grotesco. Claro, essas são as marcas do toque Cronenberg a que os espectadores estão mais do que cientes – uma das carreiras mais autorais e consolidadas da indústria. Aos 79 anos, o diretor retoma com “Crimes do Futuro” a realização de um gore-explícito, depois de oito anos sem produzir longas-metragens. E retoma também sua particular obsessão com metáforas carnais, meio que ausente da safra mais recente – para ele, o corpo vai além do imediato físico da corporeidade, é como se fosse um invólucro que abriga os monstros e pesadelos que nos habitam. As erupções dessa matéria interna, naturalmente, se dão como transições que alteram o status da carne, uma carne que muda, que vem de dentro, um páthos que habita nossa interioridade e que se materializa em compostos abjetos, mas estranhamente suportáveis. Tudo não passa de metáforas, reage o espectador, mirando a zona de conforto que lhe foi subtraída – o pensamento é um impulso material, diria Artaud. À sua maneira, o diretor canadense procura em seus filmes e roteiros recuperar o programa do teatro da crueldade do poeta francês, que dizia: A verdade da vida está na impulsividade da matéria. A mente do homem foi envenenada por conceitos. Não lhe peça que se contente, peça-lhe apenas que fique calmo, que acredite que encontrou seu lugar. Mas só o louco é realmente calmo.
“Crimes do Futuro”, afinal, tem um enredo, um plot: mesmo com personagens abstraídos de psicologismos, um conflito se instala entre o supracitado “Registro” e outra organização, formada por pessoas que evoluíram à margem da sociedade e comem barras de chocolate roxas produzidas sinteticamente. Um policial negro ocupa-se em supervisionar esses mundos, que confluem para o espaço performático de Saul e Caprice. Logo na abertura, um menino de 8 anos que come latas de lixo de plástico é morto por sua mãe – e seu cadáver volta, para integrar-se à representação artística, despida de psicologia e voltada à vibração de signos de força, uma abertura que rompe com qualquer tipo de consolo de uma eventual angústia do espectador. O corpo, nos filmes de Cronenberg, pensa como matéria, captando ondas de outros corpos-matéria. Bem-vindos à prática material da linguagem.