Curta Paranagua 2024

Coringa

Fada Insensata ou Barbie Antifascista?

Por Jorge Cruz

Coringa

Não há nada mais democrático na sociedade da capitalista do que uma greve de lixeiros. Ela afeta a dignidade de toda a população, que precisa conviver com ruas nojentas em qualquer área da cidade. É assim que “Coringa” obra aclamada no Festival de Veneza com o Leão de Ouro de melhor filme de 2019 inicia sua jornada.

Tal qual Berlim, que em 2008 premiou “Tropa de Elite” com o Urso de Ouro, o júri não quis saber de fugir da raia dos críticos que apontavam uma dose de representação extremista na obra. O hoje revisitado filme de José Padilha sem dúvida consta em uma lista de produções que ilustram uma sociedade falida, servem de combustível para debates, mas nunca, em nenhuma hipótese, devem ser passíveis de censura. Porém, a preocupação com as fragilidades dessas representações existe – como se partisse do princípio de que há, na imensidão de gente que fará “Coringa” arrecadar centenas de milhões de dólares, protofascistas em potencial. O fato é que o roteiro de Todd Phillips e Scott Silver para essa nova versão de um dos mais famosos vilões de Gotham City, ao tentar afastar supostas interpretações, emburrece a obra. 

Todd Phillips, por sinal, se reinventa – um passo gigante em uma carreira sólida apenas na comédia. Desde o clássico adolescente “Caindo na Estrada” (2000), ele conseguiu equilibrar obras rentáveis com produtos que não caíam no besteirol simplório. Assim ele fez seu pé-de-meia com a trilogia “Se Beber, Não Case” e, sem tanta pressão, levou o projeto de “Coringa” de forma autônoma em relação ao Universo DC. Mesmo com a óbvia necessidade de vinculação da vida de Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) com Bruce Wayne, a auto suficiência do longa-metragem é louvável. Esqueça os fan services ou aquela referência ao gibi número 3817 lançado em 1972. É uma obra que se referencia dentro do próprio cânone cinematográfico.

A releitura do Coringa tem como ponto de partida um Arthur que sente o peso de ser descartável em uma sociedade que oprime sua gente com ferramentas como a violência e empregos precarizados – além de cortes de incentivos governamentais para programas sociais. Na realidade de Gotham, um rico empresário quer que acreditem ser ele a única esperança de melhora, em uma clara tentativa de manter seu gráfico de receita x despesa mirando cada vez mais alto. O espectador pode trocar Gotham por qualquer cidade grande ou país selvagemente capitalista da Terra. No caso, o filme se afasta de nós na esfera da temporalidade, sendo ambientado em 1971.

Aliás, mesmo não se importando com easter eggs, é excepcional a brincadeira do roteiro para nos confirmar essa informação. Em uma cena na porta de um cinema, os filmes em cartaz são dois exemplares da falta de rumo pelo qual Hollywood vivia naquela época: “Um Tiro na Noite”, versão estadunidense de “Blow Up – Depois Daquele Beijo” dirigida por Brian de Palma e “As Duas Faces do Zorro”, um exemplar tardio do gênero capa e espada que trazia o já quarentão George Hamilton na dupla versão do mascarado: uma que usava preto e sua versão gay, que usava, vejam só, rosa. Essa fina ironia imagética é uma exceção, já que “Coringa” tende a ser referencial com o que há de mais Geração Nova Hollywood possível.

Pois bem, em 1971, em meio à greve dos lixeiros, Arthur segue sendo humilhado diariamente. Não há nada de bom que lhe acontece na vida. Indo do trabalho para casa, onde precisa cuidar de sua mãe doente, o filme telegrafa desde o início que ele será um caso daquele violentado que se cansa de dar a outra face. Seus ataques de riso, uma patologia clinicamente comprovada, é a porta de entrada para diversas situações ruins. Arthur, então, desiste de manter em dia sua saúde mental – o que, aliás, parece ser a preocupação número um da pós-modernidade. Essa alegoria sobre o riso patológico já serviu de brincadeira na cena de “Mary Poppins” (1964) em que ela e as crianças visitam o Tio Albert (Ed Wynn). Há um que na maneira de Joaquin Phoenix interpretar durante esses ataques que nos remete ao descontrole daquele número musical.

A mãe de Arthur, Penny Fleck (Frances Conroy), a despeito de todas as camadas que os atos seguintes tentarão desnudar, nos é apresentada como uma pessoa de idade que, de casa, se alimenta das notícias sensacionalistas da televisão. Uma contribuição midiática para o sentimento de desencanto pela sociedade, de espetacularização da violência, que já nos trouxe grandes exemplares na história do cinema. Nesses diálogos com a mídia televisiva e a distopia do caos urbano, o roteiro de Phillips brinca com obras do final dos anos 1970 e início dos anos 1980. Tanto que em recente entrevista, o diretor – reagindo às menções a tantas referências, fez lá uma lista própria das inspirações.

A mais óbvia das fontes por ele utilizada é “O Rei da Comédia” (Martin Scorsese, 1982). Não só pela fuga de Arthur ser o humor stand up, gerando uma busca pelo sucesso e constantes idealizações de mundo. A inserção do personagem Murray Franklin permitiu a Robert de Niro viver o lado Jerry Langford (Jerry Lewis) daquela obra scorsesiana. Essa aproximação com a filmografia do veterano cineasta será o deleite maior para os cinéfilos efusivos. Porém, o longa-metragem precisa superar tudo isso. Ele supera, mas com algumas limitações.

Uma delas é a ausência de uma linguagem estética homogênea ou, pelo menos, que assuma ser pouco inspirada. A câmera de Phillips quer passar uma mensagem ao final do primeiro ato. Ela se movimenta de maneira constante nas cenas em que Arthur não fala, quase como o que Yorgos Lanthimos fez (até demais) em “A Favorita” (2018). O espectador começa a comprar a ideia de que, para o nosso olhar ingênuo, apenas o que o protagonista fala merece atenção. Excelente para as pretensões de representar o narcisismo do personagem. Só que essa tática é sumariamente abandonada logo depois.

É curiosa a abordagem a partir do humor, tornando bem didática a prática tão comum na sociedade de travestir preconceitos com a desculpa de inocentes piadas politicamente incorretas. As respostas que Arthur dá à crise pela qual passa será o argumento principal para que os detratores da obra possam ventilar uma risível relação entre assistir ao filme e tomar alguma atitude violenta. Como que antevendo essa leitura, “Coringa” nos dá mais uma (não tão óbvia) referência, em uma cena onde o protagonista corre na saída de um túnel, em claro diálogo visual com “Laranja Mecânica” (Stanley Kubrick, 1971).

Cogitar censura ou limitação à fruição de obras de arte, pelo visto, é um esporte que não sairá de moda tão cedo. Por isso, a vinculação de “Coringa” ou qualquer outro filme com ataques a vidas humanas, mesmo que soe absurdo para muitos, continuará sendo objeto de textos e críticas. Assim como aquele filme de Kubrick foi censurado, inclusive no Brasil, à época de seu lançamento. Não há nada nessa obra que possa conduzir de forma tão extrema o olhar do espectador. O problema, caso ele exista, é da pessoa e não do filme.

Porém, diante de tanta comoção que possa causar, um longa-metragem que pode ser tanta coisa, cai na armadilha de tentar ser algumas e não outras. Aqui está o ponto nevrálgico que joga no ralo as chances de “Coringa” ser a obra-prima que muitos querem que seja – ao mesmo tempo que faz respirar aliviado aqueles que procuram subliminaridades em cada frame. Na defesa da origem violenta de Arthur, o roteiro nos pinta com brilhantismo a burguesia hipócrita de Thomas Wayne (Brett Cullen) – ao mesmo tempo que, em seu ato final, mastiga o primeiro plot twist envolvendo Zazie (Sophie Dumond) e monta, literalmente, um debate acerca das intenções do Coringa – quase como se não fossem desdobramentos do mesmo filme.

Aliado a um conjunto de imagens limitadamente impactantes, quase que para alimentar o ótimo trailer que tomou conta dos cinemas nas últimas semanas, “Coringa” não adentra na mata alternativa que ele parecia querer trilhar. Quase como se, ao longo de sua produção, o potencial mercadológico conduzisse a obra por soluções mais simples, que fizesse o público se sentir agraciado por unir todas as pontas sem muito esforço. Há um constante emburrecimento do produto final, tornando sua construção psicológica a grande atração do filme – quando deveria ser o caminhar dele. É chover no molhado dizer que, por conta disso, o grande destaque de “Coringa” seja a atuação de Joaquin Phoenix – mas poderia ser muito mais.

Em uma sociedade em que as pessoas compram versões, sem nunca ponderar o outro lado, o longa-metragem apostou na projeção de sua popularidade pós-sessão. A Warner não pode correr o risco de fracassar e o Universo DC não tem mostrado a mesma força da Marvel. Só que aqui ela estica a corda da inserção de público com muita força, ao mesmo tempo em que vende densidade na obra. Não cumpre o objetivo de trazer qualidade para os filmes populares – pelo contrário, se adapta de certa forma a eles. Algo que o cinema dos anos 1970, tão referenciado por Todd Phillips, ousou não fazer – por isso se chamou de Nova Hollywood.

O ato final de “Coringa”, ao mesmo tempo que torna didática sua experiência, também é uma aula de cumplicidade. Acaba que nossas sensações são dúbias em relação à obra, que é poderosa em alguns aspectos e quase genérica em outros. Um fragmento pouco instigante da perturbação espetacularizante que somente a sociedade (e o cinema) estadunidense conseguem criar.

3 Nota do Crítico 5 1

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