Mostra Um Curta Por Dia 2025

Coma

Cabeça vazia, oficina (estilizada) do diabo

Por Fabricio Duque

Durante o Festival de Berlim 2022

Coma

Lidar com tempos paralelos nunca foi um problema para o realizador francês Bertrand Bonello, especialmente no filme ”L’Apollonide: Os Amores da Casa de Tolerância”, onde a existência humana transcende a limitação de se estar no passado ou no presente. O diretor também imprime outra de suas características mais marcantes: a crítica social, abordada pela apropriação coloquial com artifício pop-racional. Neste, em questão aqui, “Coma”, exibido na mostra Encontros do Festival de Berlim 2022, e integrante da seleção deste ano do Indie Lisboa, é uma carta esperançosa endereçada a sua filha, Anna Mouchette, realizada durante a pandemia e que fez todos entrarem em quarentena. “Meu filme anterior, “Nocturama”, é dedicado a você, já este novo é um “gesto a mais”, disse. Aqui, essa carta, apresentada como uma terapêutica-neurocientista-cognitiva crônica-fabular dessa “necessidade aprisionada”, constrói meta-exercícios de linguagem por tempos paralelos, metaforizados por sensações de hipnose, paranoia, alucinações e coma, um “sono profundo”, título deste filme, que ainda cria outra associação com o sobrenome de uma personagem, uma fútil e alienada apresentadora de um programa meteorológico.

“Coma” é um documento encaminhado. Subjetivo, estético e multi-forma, entre a realidade etérea e o real tedioso. É preciso então que a imaginação venha à tona, como uma maneira de salvação. A narrativa não tem medo de explorar técnicas cinematográficas e estilismos visuais. Como foi dito, este longa-metragem é uma crônica fabular intimista sobre a pandemia. Sobre uma adolescente de dezoito anos, em ebulição social, mas que é impedida por um vírus mortal que dominou o mundo. A narrativa, tipicamente francesa, corrobora o existencialismo racional de Jean-Paul Sartre, e ou a “utopia” de Karl Marx, ou a fascinação dos franceses pela morte e “qual é o melhor Serial Killer: Ted Bundy ou Charles Manson?”, intercalado com confissão de outro famoso assassino em série; com cenas do filme “Inferno”, de Clouzout; com o moderno “Face Time”. “Coma” é também uma análise-oferta da própria sociedade: seus “sucessos, fracassos, futuro e amores desaparecidos”.

A “viagem”, de introspectivo fluxo de pensamento, que Bonello apresenta inclui a “vida novela” por Barbie e Ken, citada e “zoada” com Kristen Stewart e Robert Pattinson, de “Crepúsculo”. “Coma” também pode ser traduzido como uma obra de autoajuda, de um pai preocupado com o futuro próximo que a filha irá viver. Ensina então a entender o tédio, a se sentir invencível e a manter o autocontrole. Tudo é na verdade um experimento para criar uma fantasia realista e uma atmosfera de pesadelo acordado. Mas seu diretor não quer a superficialidade da verborragia. Não. Bonello deseja aprofundar a psique com o “subconsciente orgânico que se desconecta da realidade”. Que criar “limbos” e “free zone”. Um tempo não existe apenas em uma dimensão. Há câmeras de segurança que observam tempos observados da protagonista, impulsiva e sem máscara na rua. Ou de mundos paralelas que quebram a quarta parede da criação. Ou das “associações de ideias” do jogo de memória, o Revelador, que serve como um “atalho do limbo que permite o cérebro encontrar o nível que você perde o controle e que o habilita a fazer coisas além do normal”. Sim, essa “viagem”, de ondas cognitivas aprofundando imersões, ganha proporções ególatras. E até para quem se interessa muito pelo tema da neuro-psicanálise “sofre” um pouco com a quantidade de informações e “liberdades poéticas”, incluindo uma “brincadeira” de ficção-científica com o nosso país: “Brasil chegou a 210 milhões eliminados, muito melhor pra gente  (franceses); África eliminada, nós estamos progredindo; ah a  França acabou de ser eliminada (morde-assopra?)”.

Sim. “Coma” começa a “viajar” bastante, como, por exemplo, vira animação 2D, depois 3D, depois quer ser um “romance sem julgamentos”. Ou a “piadinha”: “pedofilia e a filosofia de Michael Jackson nas músicas”. Cabeça vazia oficina do diabo. Sim. Mas quem muito quer, fica sem nada. É o “determinismo” versus “a profunda questão de passar a vida procurando respostas”. E a crítica sobre a questão “Nutella” da “arte contemporânea” (mas que a pintura de Jeff Bazos, o “demônio”, foi feita por sua filha). E sobre a “moralidade e hipocrisia da sociedade”. Paremos um pouco para refletir. Será que o diretor para se comunicar neste filme precisa se adequar à linguagem de sua filha? Será que só assim poderemos construir um diálogo com os mais jovens? Sabemos que tudo é retórica. Essas perguntas e até mesmo o próprio filme. Não há respostas. Não há como ter respostas. O filme tenta ensaiar com metáforas: que na quarentena “ela pode ser ela mesmo e ninguém irá julgá-la”.

E no final de “Coma”, o balé-caos da natureza. Em autodestruição e renovação. “Não, o mundo não há antes e não há depois, só o que você ouviu falar. É só você nele e é o que importa. Nossos sacrifícios ajudarão acessar a uma nova realidade, entre o dia e a noite, vida e morte. Mas tudo sem um diretor. Se você passar no inferno, não pare! O limbo não é entre dois mundos, não é entre sonho e realidade, é a margem, um espaço em branco esperando para ser ocupado e no centro não há espaço, porque um dia o céu brilhará. Eu estarei perto de você, ou atrás de você, assistindo você, será o início de uma nova história, uma nova história que só pertence a você”, finaliza-se. Talvez “Coma” nem queira ser considerado um filme, talvez seu propósito seja mesmo uma carta pública, uma forma de chegar a sua filha. Um documento que perpetua o agora e estimula a esperança de que esta vida só tem uma pessoa. E que o outro sempre será um coadjuvante, e muitas vezes, um figurante. “Coma” é um filme para acordar, apesar do excesso de seus estilismos narrativos.

3 Nota do Crítico 5 1

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